sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Boas observações. Outro dia, e o fato ocorreu pela segunda vez na FNAC de São Paulo, perguntei ao funcionário da caixa se o cartão Diners era aceito. "O Diners, não. Mas o Dainers, sim!". Pouco depois, ele pediu que eu colocasse minha rúbrica no documento de compra. "Se o senhor quiser corrigir a pronúncia alheia, em lingua estrangeira, aprenda antes a sua lingua", disse-lhe ensinando pacientemente que o certo é "rubrica". A cara apatetata continuou, o sorriso idiotizado idem. Não chego a apoiar Aldo Rebelo, mas sempre que constato coisas assim, recordo que na França o ridículo mata. Aqui, engorda.

Quinta, 12 de janeiro de 2012, 08h07

Duas notinhas

Sírio Possenti
De Campinas (SP)

Um leitor manifestou seu incômodo com o fato de que a palavra inglesa "socialite", pronunciada "socialaite", aparece normalmente na grafia original. Se é empréstimo, pergunta se não deveríamos escrever "socialaite", que ele analisa como aportuguesamento da palavra.

Vou fazer duas observações sobre o caso, que valem também para outros. Não basta escrever a palavra mais ou menos como é pronunciada para que seja aportuguesada. O processo se completa quando a palavra se adapta também a outras regras, que valem mais que a adoção de nova grafia. Sintoma muito mais forte de aportuguesamento seria a palavra ser pronunciada de maneiras diferentes em diversas regiões, exatamente segundo as regras regionais aplicadas aos "fonemas" correspondentes em palavras nativas.

Assim, o xis da questão não é propriamente grafar "ai" em vez de "i" (afinal, essa é a pronúncia em inglês, e a pergunta poderia ser por que eles escrevem com "i"...). O xis da questão é a pronúncia do final da palavra: quando ouvirmos "socialaite / socialaiti / socialaitchi", então podemos ter certeza de que a palavra foi aportuguesada, independentemente de sua grafia. Espero que um dia nos demos conta de que a fala é mais determinante do que a escrita no processo de empréstimo.
A observação vale para outras palavras. Ocorre-me mencionar "marketing", que Veríssimo às vezes escreve (acho que com alguma ironia) "marquetingue". Não gosto de atribuir às autoridades a decisão de como se deve escrever uma palavra dessas, na hipótese de os usuários (marqueteiros e empresários, basicamente) decidirem aportuguesá-la pela prática.

A entrada oficial do "k" no alfabeto não se destina, se quisermos seguir a lei, a adaptar grafias como a dessa palavra (o "k" é para siglas e nomes próprios e palavras derivadas, como kafkiano, o que não deixa de ser uma homenagem do acordo a Kafka...). Eu não escreveria "marketim", nem "marketingue", seguindo em parte Veríssimo, que escreveu antes do acordo ortográfico. Preferiria "márquetim". A pronúncia já é, de fato, variável: "marquetim / marquetchim", terminando com vogal nasal. Tem três sílabas, não quatro. Este é o real aportuguesamento. Ocorre aos poucos, independentemente da grafia escolhida nos empregos reais. Dois fatos são importantes, em casos assim (o resto é prisão excessiva à ideologia da língua uniforme, na verdade, uniformemente imposta). Primeiro, o empréstimo é um processo; a entrada de palavras estrangeiras se faz lentamente; começa num domínio (esporte, tecnologia, ciência, diplomacia etc.) e pode ir se espalhando, ou permanecer restrito a certos espaços - depende do domínio em que se dá a entrada e da circulação desses discursos na sociedade. O espaço de "socialite" é ainda bem restrito: onde ocorre, além das colunas sociais e conexos?

O fato mais importante, a meu ver, é considerar o efeito, o valor social do fato: em vez de perguntar como a forma deve ser, é mais sábio perguntar que efeitos se produzem escrevendo, por exemplo, "socialite" ou "socialaite". No primeiro caso, o efeito básico é a percepção de que se trata de palavra estrangeira, uma palavra dos outros; pode soar esnobe; mas também pode soar "liberal", no sentido de que seu emprego mostra que alguém se rebela contra regras que mandam falar de forma conservadora, sem estrangeirismos; é um desafio às normas. No segundo, o efeito é de aceitação da forma estrangeira, como se o caso fosse normal; por outro lado, alterar sua forma equivale a dar a entender que já se trata de português; assim o eventual efeito de esnobismo desaparece.
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Não acho que devamos fazer grandes esforços para incorporar uma pronúncia característica (de alguma região ou a de maior prestígio) quando estudamos uma língua estrangeira. É claro que falar a língua com marcas de nosso sotaque permite que logo descubram que viemos de fora, que somos turistas etc. Pode ser que haja efeitos negativos, especialmente quando se trata de gente esnobe.

Particularmente, acho ótimo que muita gente fale inglês com sotaques não "originais". A principal razão é que os entendo melhor. Por exemplo: o sotaque de Amós Oz, no Roda Viva, praticamente precisei apelar para as legendas. Também entendi tudo, absolutamente tudo o que Tariq Ali disse no programa, quando esteve aqui para uma FLIP, acho (deviam reprisar, aliás, e obrigar o pessoal da Globo News e da CBN a ouvir). O mesmo não aconteceria se os entrevistados fossem o Obama ou o Príncipe Charles (ou escritores / intelectuais / jornalistas americanos e ingleses). Achava ótimo o inglês do Pavarotti, sem nenhum esforço para substituir os RR do italiano, entre outras coisas. É também uma forma de manter a identidade.

Digo isso e logo acrescento uma dúvida: não sei se é eficiente ou adequada a propaganda de uma escola de inglês na qual os atores não falam com sotaque "original". Está no ar uma propaganda da FISK na qual se diz "FISK" mesmo, com o "i" de "jabuti" ou de "tiririca", que não é o do inglês. As escolas de línguas estão se tornando menos exigentes no quesito ou será que os diretores da campanha não percebem a diferença das vogais de "shit" e de "she"?

Será uma vingança? Já que David Niven falava "tudo bem" com as oclusivas aspiradas e com "m" no final (e não um ditongo nasal, como nós), numa antiga propaganda de uísque (ou de whisky?), nossa vingança é dizer "Fisk" com nosso "i" autêntico.

Sírio Possenti é professor titular do Departamento de Linguística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua, Os limites do discurso, Questões para analistas de discurso, Língua na Mídia e Questões de linguagem.