Quinta, 12 de janeiro de 2012, 08h07
Duas notinhas
Sírio Possenti
De Campinas (SP)
De Campinas (SP)
Um leitor manifestou seu incômodo com o fato de que a palavra inglesa
"socialite", pronunciada "socialaite", aparece normalmente na grafia
original. Se é empréstimo, pergunta se não deveríamos escrever
"socialaite", que ele analisa como aportuguesamento da palavra.
Vou fazer duas observações sobre o caso, que valem também para outros.
Não basta escrever a palavra mais ou menos como é pronunciada para que
seja aportuguesada. O processo se completa quando a palavra se adapta
também a outras regras, que valem mais que a adoção de nova grafia.
Sintoma muito mais forte de aportuguesamento seria a palavra ser
pronunciada de maneiras diferentes em diversas regiões, exatamente
segundo as regras regionais aplicadas aos "fonemas" correspondentes em
palavras nativas.
Assim, o xis da questão não é propriamente grafar "ai" em vez de "i"
(afinal, essa é a pronúncia em inglês, e a pergunta poderia ser por que
eles escrevem com "i"...). O xis da questão é a pronúncia do final da
palavra: quando ouvirmos "socialaite / socialaiti / socialaitchi", então
podemos ter certeza de que a palavra foi aportuguesada,
independentemente de sua grafia. Espero que um dia nos demos conta de
que a fala é mais determinante do que a escrita no processo de
empréstimo.
A observação vale para outras palavras. Ocorre-me mencionar "marketing",
que Veríssimo às vezes escreve (acho que com alguma ironia)
"marquetingue". Não gosto de atribuir às autoridades a decisão de como
se deve escrever uma palavra dessas, na hipótese de os usuários
(marqueteiros e empresários, basicamente) decidirem aportuguesá-la pela
prática.
A entrada oficial do "k" no alfabeto não se destina, se quisermos seguir
a lei, a adaptar grafias como a dessa palavra (o "k" é para siglas e
nomes próprios e palavras derivadas, como kafkiano, o que não deixa de
ser uma homenagem do acordo a Kafka...). Eu não escreveria "marketim",
nem "marketingue", seguindo em parte Veríssimo, que escreveu antes do
acordo ortográfico. Preferiria "márquetim". A pronúncia já é, de fato,
variável: "marquetim / marquetchim", terminando com vogal nasal. Tem
três sílabas, não quatro. Este é o real aportuguesamento. Ocorre aos
poucos, independentemente da grafia escolhida nos empregos reais.
Dois fatos são importantes, em casos assim (o resto é prisão excessiva à
ideologia da língua uniforme, na verdade, uniformemente imposta).
Primeiro, o empréstimo é um processo; a entrada de palavras estrangeiras
se faz lentamente; começa num domínio (esporte, tecnologia, ciência,
diplomacia etc.) e pode ir se espalhando, ou permanecer restrito a
certos espaços - depende do domínio em que se dá a entrada e da
circulação desses discursos na sociedade. O espaço de "socialite" é
ainda bem restrito: onde ocorre, além das colunas sociais e conexos?
O fato mais importante, a meu ver, é considerar o efeito, o valor social
do fato: em vez de perguntar como a forma deve ser, é mais sábio
perguntar que efeitos se produzem escrevendo, por exemplo, "socialite"
ou "socialaite". No primeiro caso, o efeito básico é a percepção de que
se trata de palavra estrangeira, uma palavra dos outros; pode soar
esnobe; mas também pode soar "liberal", no sentido de que seu emprego
mostra que alguém se rebela contra regras que mandam falar de forma
conservadora, sem estrangeirismos; é um desafio às normas. No segundo, o
efeito é de aceitação da forma estrangeira, como se o caso fosse
normal; por outro lado, alterar sua forma equivale a dar a entender que
já se trata de português; assim o eventual efeito de esnobismo
desaparece.
***
Não acho que devamos fazer grandes esforços para incorporar uma
pronúncia característica (de alguma região ou a de maior prestígio)
quando estudamos uma língua estrangeira. É claro que falar a língua com
marcas de nosso sotaque permite que logo descubram que viemos de fora,
que somos turistas etc. Pode ser que haja efeitos negativos,
especialmente quando se trata de gente esnobe.
Particularmente, acho ótimo que muita gente fale inglês com sotaques não
"originais". A principal razão é que os entendo melhor. Por exemplo: o
sotaque de Amós Oz, no Roda Viva, praticamente precisei apelar para as
legendas. Também entendi tudo, absolutamente tudo o que Tariq Ali disse
no programa, quando esteve aqui para uma FLIP, acho (deviam reprisar,
aliás, e obrigar o pessoal da Globo News e da CBN a ouvir). O mesmo não
aconteceria se os entrevistados fossem o Obama ou o Príncipe Charles (ou
escritores / intelectuais / jornalistas americanos e ingleses). Achava
ótimo o inglês do Pavarotti, sem nenhum esforço para substituir os RR do
italiano, entre outras coisas. É também uma forma de manter a
identidade.
Digo isso e logo acrescento uma dúvida: não sei se é eficiente ou
adequada a propaganda de uma escola de inglês na qual os atores não
falam com sotaque "original". Está no ar uma propaganda da FISK na qual
se diz "FISK" mesmo, com o "i" de "jabuti" ou de "tiririca", que não é o
do inglês.
As escolas de línguas estão se tornando menos exigentes no quesito ou
será que os diretores da campanha não percebem a diferença das vogais de
"shit" e de "she"?
Será uma vingança? Já que David Niven falava "tudo bem" com as oclusivas
aspiradas e com "m" no final (e não um ditongo nasal, como nós), numa
antiga propaganda de uísque (ou de whisky?), nossa vingança é dizer
"Fisk" com nosso "i" autêntico.
Sírio Possenti é professor titular do Departamento de Linguística da Unicamp e autor de Por
que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua, Os limites
do discurso, Questões para analistas de discurso, Língua na Mídia e Questões de linguagem.