(2010) A crítica filosófica de O Sobrinho de Rameau, de D. Diderot |
Escrito por Suellen da Rocha Gomes |
ROTEIRO DE MINI-CURSO
_______________________________________________________________________
Objetivo: Explorar a crítica filosófica das “profundezas” feitas por Jean-François Rameau, personagem de O Sobrinho de Rameau, no diálogo com Denis Diderot, o filósofo.
Justificativa:
A obra de Diderot utilizada neste curso insere-se no movimento do
iluminismo francês do século XVIII e apresenta, num diálogo mordaz,
críticas à tradição filosófica de elevação da racionalidade. Utilizando
dois personagens emblemáticos para a exposição, Diderot
Proposta do curso:
O curso divide-se em três grandes pontos de abrangência que visam
propor: (i) a discussão do uso da obra literária, principalmente o
diálogo, como recurso filosófico à tradição da exposição sistemática;
(ii) a análise dos personagens-arquétipos que contribuem para o contexto
de crítica, representando a defesa da tradição filosófica por Diderot e
a radicalidade do relativismo por Rameau; e (iii) a “inversão geral da
ordem” proposta na inversão dos mundos numa passagem de forte teor
filosófico de O Sobrinho..., com o levante da crítica à meta-física.
Referências Bibliográficas
DIDEROT, Denis. O sobrinho de Rameau. In DIDEROT, Denis. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
GUINSBURG, Jacó. Denis Diderot. São Paulo: Revista USP. Dezembro / Janeiro / Fevereiro: 1990.
ROMANO, Roberto. Diderot, Penélope da Revolução. São Paulo: Revista USP. Março / Abril / Maio: 1989.
MINI-CURSO
_______________________________________________________________________
A CRÍTICA FILOSÓFICA DE O SOBRINHO DE RAMEAU,
DE D. DIDEROT
OBRA LITERÁRIA, RECURSO FILOSÓFICO
A pena espirituosa e a mente instigante do escritor alinham as idéias
(ou para nossa sorte as desalinham?) nos textos que saltam das páginas e
alcançam os leitores. A escrita literária detém o prazer de uma leitura
considerada mais leve, descontraída, esvoaçante e nem por isto
despretensiosa. O texto poético-narrativo minimiza a fixidez do texto
puramente descritivo e proporciona a fluidez para as problematizações e
discussões.
Mas
não se trata de separar uma escrita que seja estritamente literária de
outra cuja função seja a filosófica, ou mesmo da distinção do objetivo
do leitor, ora detendo-se em leituras literárias, ora enfatizando a
leitura filosófica. A composição de uma obra que atraia para o prazer
indiscutível do movimento literário e a sagacidade da discussão
filosófica.
A
obra literária torna-se então uma ferramenta, um recurso, para a
libertação textual das dominações fechadas e encolerizantes, cultuadas
pela tradição. As metáforas, ironias, hipérboles, metonímias, passam a
servir à expressão filosófica sempre tão analítica, normativa e
descritivo-demonstrativa, mesmo que o gênero seja objeto de desconfiança
de sua perspicácia intelectual ou filosófica. Quão pretensiosos são
filósofos!
Roberto
Romano compreende que através do texto literário e “contra a imposição
violenta do Tratado, Diderot opera uma revolução na forma expositiva da
filosofia”.¹ Ora, o editor da Enciclopédia
que tornou-se conhecido por tamanho intento, envolvido numa empresa de
longos anos de trabalho, denota com sua obra literária (exemplos como Diálogo entre D’Alembert e Diderot, Suplemento à viagem de Bougainville, Diá-
_____________________________
1 Roberto Romano em seu artigo Diderot, Penélope da Revolução,
acrescenta que esta revolução operada por Diderot ataca os
significantes da história da filosofia para justamente dissolver os
significados.
logo de um filósofo
e outros) o combustível para a detonação de novas abordagens da
filosofia, revivendo de forma majestosa a proposta do diálogo, presente
na áurea história da filosofia grega com Sócrates e Platão. Ainda no
caminho do pensamento de Romano, a sátira diderotiana pode ser
considerada como herdeira do diálogo socrático que discute
dialeticamente, ao contrário do diálogo platônico, uma espécie de
afirmação “monológica” das verdades pré-estabelecidas e propensas à
inauguração do “diálogo magistral”.
O diferencial do texto poético (seja em forma de diálogo, ou
romance...) é justamente a possibilidade de análises proporcionadas
através da obra, garantia de inúmeras conexões arrojadas e
contextualizadas. No entanto a fixidez do texto tradicional e expositivo
garante ao leitor a comparação e hierarquização tão nobres a dita
verdadeira compreensão do texto filosófico. Talvez “estúpido” fosse a
melhor ponderação para tal pensamento.
Numa citação de Albin Michel, Romano faz uma colocação bastante
pertinente sobre tal posição “engessada” arremetendo a característica de
dado leitor:
O
sistemático, como Aristóteles, “é pensador sem sonho (oposto a Platão),
ele exibe desprezo pelo mito, e quando os poetas não lhe servem, não os
aprecia. Ainda hoje encontramos gente que só consegue aproximar-se de
um assunto, aplicando-lhe compartimentos [...] e imagina que nas gavetas
e caixas de Aristóteles, as coisas apresentam-se com maior clareza,
quando, na realidade, elas estão ali, perfeitamente mortas”. (ROMANO,
R. Diderot, Penélope da Revolução. São Paulo: Revista USP, 1989)
Essa
apresentação sistemática da filosofia torna os conceitos estáticos, na
medida em que são definidos, julgados, comparados, e substituídos. A
exposição sistemática serve quase a um procedimento didático elaborado
pelo autor, no seu grau máximo de estudo e pesquisa, que habilita a
pretensa verdade da escrita acadêmica. Verdade tão singela e tão exposta
a refutação e sobreposição.
A obra O Sobrinho de Rameau,
de Denis Diderot fornece-nos a expressão escrita da leveza artística
(literária) e a problematização filosófica. Dosador (no sentido da
condução dos argumentos sem extremismo), Diderot lança os artifícios
fugidos do diálogo para prender o leitor.
Sua
astúcia no confronto com grandes intelectuais (verdadeiros maciços de
sistemas na história da filosofia) e exposição radical de seus
pensamentos torna-o mal-quisto na comunidade francesa do século XVIII,
mas não menos digno de figurar ao lado de outros iluministas para os
acontecimentos da Revolução Francesa.²
Romano
nos salienta a espécie de aproximação do leitor da escrita diderotiana
com a própria filosofia quando compreende que o autor oferece uma
reapresentação desta. Quiçá uma ressignificação! Interessante como a
própria leitura filosófica do texto literário pode provocar-nos a
afetação de nossas paixões. Talvez seja essa aproximação que beneficie o
ressurgir das abordagens filosóficas, um tanto sobrepostas pelas
expressões de retórica na própria escrita. Vejamos a citação de Romano
sobre a função da escrita diderotiana:
Ele
[Diderot] apanha os leitores que passam ao largo da complexidade
existente na pele, na superfície. Acostumados por Rousseau, e por seus
êmulos românticos, ao charlatanismo das “profundezas”, os hermeneutas
desse tipo imaginam que um texto é só... um texto, ignorando nele o
resultado magnífico de todo o processo vital e intelectivo. (ROMANO, R. Diderot, Penélope da Revolução)
Vis leitores de Diderot, como estão enganados que um texto seja simplesmente mais um texto!
O DIÁLOGO DIDEROTIANO
O texto O Sobrinho de Rameau
apresenta-se como um diálogo entre dois personagens-chave para a
discussão da problemática dada aos iluministas nos séculos XVII e XVIII.
Este diálogo denota o confronto fictício entre Denis Diderot (o
filósofo) e Jean-François Rameau (personagem real, mas pelo que
estudiosos relatam de maior distinção do que a retrato feito por
Diderot) num encontro casual. Repleto de descrições pormenorizadas dos
personagens e suas reações, o diálogo estende-se em geral sobre arte
apresentando também explanações sobre educação moral, mas alcança altos
pontos de discussão sobre teoria do conhecimento, que caberá nossa
atenção neste trabalho.
Os
personagens encarnam arquétipos de discussão, ou seja, são alegorias
utilizadas por Diderot para o singelo embate de forças emergentes no
iluminismo francês e tão caras à história da filosofia: a crise do
racionalismo no levante filosófico dos sécu -
_____________________________
2 Como afirma Jacó Guinsburg em seu artigo Denis Diderot, na Revista USP, de 1990.
los XVII e XVIII (e talvez tardia?) da força do empirismo.
Assim, Eu e Ele, filósofo e boêmio, Diderot e Rameau, constituem representações metafórico-literárias da discussão filosófica e
O
“eu” filosofante se dissolve nos pensamentos do sobrinho de Rameau,
resolve a questão apresentada por “ele”, na forma aparente das respostas
fixas. Mas estas apenas dinamizam a violência da dissolução de ambos,
“filósofo” e “vagabundo”, na linguagem. (ROMANO, R. Diderot, Penélope da Revolução)
Vejamos de forma mais fundamentada as posições representadas pelos personagens.
À defesa dos filósofos
O personagem Eu (Diderot) de O Sobrinho de Rameau,
é apresentado inicialmente no diálogo, de forma superficial, mas já
contendo o cerne de sua postura em passagens que denotam o isolamento do
tradicionalismo filosófico, pois “sempre solitário” entretém-se consigo
mesmo divagando sobre política, amor, gosto ou filosofia, ao passo que
“olhando muito, falando pouco, ouvindo o menos possível” configura-se
numa espécie de esfera que abrange o conhecimento.
Narrador e interlocutor, Eu está constantemente discordando das explanações ávidas de Ele
(Rameau), mas rotula debochadamente seu companheiro de diálogo. É um
misto de superioridade e austeridade, põe-se altivo e reflexivo sobre o
devaneio filosófico e retrata durante a obra suas reações repugnantes
alternadas às destemperanças e incongruências observadas no seu
interlocutor.
Sua
postura no diálogo cunha a defesa da tradição filosófica, da
racionalidade, dos costumes morais, da pretensão de verdade. Defende,
acima de tudo, a concepção filosófica de intelectualidade pautava na
razão, pois é um “homem direito” e crê que “a mentira pode servir um
momento, mas a longo prazo é necessariamente nociva, e que, ao
contrário, a verdade serve necessariamente a longo prazo, embora possa
ocorrer que prejudique no momento” e venera o homem a empenhar-se na
grande verdade.
Reflete,
pondera, pensa novamente, não obstante altera a voz e as próprias
emoções com todas as “extravagâncias” ditas e feitas por Ele:
“Ó louco, arquilouco! Como é possível que em tua cabeça idéias tão
corretas se misturem com tanta extravagância?” remete gritando a Rameau,
que avalia a serenidade de seu oponente e ainda mais debochado não
apresenta qualquer resposta palpável à pergunta, pois nem mesmo
desconfia das “certezas” para tal fato.
Interessante
é notar a perturbação que o confronto com Ele provoca em Eu, de modo
que durante o diálogo diferentes passagens aludem ao aborrecimento por
tamanha petulância. No entanto, ao mesmo tempo, um misto de irritante
conquista o acomete. Vejamos tal expressão na passagem:
Eu
o escutava (...) a alma agitada entre dois movimentos opostos, eu não
sabia se me abandonava ao desejo de rir ou ao transporte da indignação.
(...) Sentia-me confundido com tanta sagacidade e baixeza, com idéias
tão corretas e alternativamente falsas, uma perversidade tão geral dos
sentimentos, uma torpeza tão completa e uma franqueza tão incomum.
(DIDEROT, D. O Sobrinho de Rameau. Pág. 49)
Diderot
dialoga encarnando os intelectuais da cena dominante na França sem
caracterizá-los explicitamente, mas implicitamente representa-os nas
tentativas de dominação, contradição e inferiorização do pensamento de
Rameau e por repetidas vezes é tentado a concordar com Rameau, mas
procura recuperar a tempo todo o seu saber e desviar o foco do assunto
em questão (principalmente nas passagens finais do diálogo).
Romano
salienta em seu artigo a incansável luta entre o filósofo e Rameau
sobre a distinção de atributos morais (a exaltação da organizada vida
sócia!), mas suas tentativas são em vão, pois o autor nos adverte que:
O
filósofo “bom” e simples do Neveu, que deseja “moralizar” o social
perverso, dele extraindo a violência, a dominação astuciosa de uns
indivíduos pelos outros, fica aquém deste mundo. Sua crítica não o
atinge. (ROMANO, R. Diderot, Penélope da Revolução)
Eu
pouco expõe suas explanações, mas detém as prerrogativas do
conhecimento, enquanto que desafiando seu interlocutor frustra-se com o
levante de possibilidades apresentadas. É mesmo que Ele
não apresenta sempre todas as possibilidades, porém é acima de tudo
fluente no jogo dialético, possuidor de uma espécie de magnetismo:
Eu
– [pensamento] Apossa-se de nossas almas, deixando-as suspensas na
situação mais estranha que já vivi... Admiro-o? Sim, eu o admiro! Eu
cheio de piedade? Sim, estou cheio de piedade. E, no entanto, um certo
ridículo mescla-se nesses sentimentos misturando-os. (O Sobrinho..., página 72)
A suspensão da alma é provocada por esse magnetismo exercido pelo
sobrinho (sua persuasão aumenta no confronto) e quase decreta a queda da
racionalidade.
Radicalidade: pela falência da razão
Jean-François Rameau é a personificação do boêmio estereotipado com
acréscimo de vários outros adjetivos (pejorativos?) aplicados por
Diderot em um “misto de altivez e baixeza, bom senso e desatino”.
Altivez por ser “dotado de uma forte compleição, de um singular calor de
imaginação e de um vigor pulmonar incomum”; baixeza por sua
obscenidade, petulância e estupidez; bom senso provavelmente
proporcionado pela sagacidade; e desatino devido, entre outros fatos, às
noções de honestidade e desonestidade estarem “estranhamente
embaralhadas em sua cabeça, pois mostra sem ostentação as boas
qualidades que a natureza lhe deu, e as más, sem pudor”. Por certo
declara-se que Diderot faz ressalvas a Rameau, pois “se um dia o
encontrardes, que sua originalidade não vos detenha: taparei os ouvidos
com vossos dedos, ou fugireis”.
Certamente Rameau é original. Fora dos padrões morais, perturbador,
desordenador, gozador. A extravagância e a provável destemperança o
tornam digno de nota: sua representação instigante no diálogo é
magnífica e espantosa.
Contrário às instituições, gozador das leis, irônico dos costumes,
etc., a prática social de Rameau vincula-se a seu bem-estar (primazia
individual!) e não à obediência das regras da sociedade (um conjunto de
preceitos ou valores, mandamentos de instituições estatais ou
religiosas, etc.). Na verdade, em uma passagem (à página 53), fica
bastante clara a reflexão de Rameau (Ele)
sobre os princípios morais que “todos têm na boca e que ninguém
pratica” e amplia que “quanto mais antiga a instituição de uma coisa,
mas idiotismos terá”. Essa desagregação dos ditames morais e sua
reafirmação são atacadas até o fim do diálogo, quando Ele já utiliza
períodos para expressar claramente sua posição: “não há princípio moral
em um inconveniente”.
Rameau representa uma espécie de ampla liberdade moral (consistiria num
discurso totalmente amoral?), quando não pauta-se nas idiossincrasias
criadas pela estagnação moral. Por este motivo é tão caracterizado pelo
filósofo como obsceno, petulante, insensato, extravagante entre outras
rotulações, justamente porque sua ação moral não prevê um estatuto de
conveniências para a vida prática. Ao contrário, Rameau é impulsivo e
indeterminado na medida em que se entrega ao jogo das dialéticas
cotidianas.
A própria posição de Rameau nas discussões denota sua desconfiança com a
instituição e afirmação da verdade. Observemos que no trecho a seguir a
questão ganha dupla face quando explora tanto uma espécie de origem
para a verdade, quanto uma aproximação a Sócrates para comentar o saber,
o aprender e a verdade.
Eu - Ó louco, Arquíloco! (gritei) Como é possível que em tua cabeça idéias tão corretas se misturem com tanta extravagância?
Ele -
Diabo, quem sabe?É o caso que as lança e elas ficam. Há nelas tanto,
que quando não se sabe tudo, não se sabe bem. Ignora-se para onde uma
coisa vai, de onde outra vem, onde esta ou aquela devem ser colocadas,
qual deve passar primeiro, onde estará melhor a segunda. Ensina-se bem
sem método? E o método, de onde nasce? (...) As razões dos fenômenos? Na
verdade, seria preferível ignorar do que saber tão pouco e tão mal. Era
justamente como me encontrava ao fazer-me professor de acompanhamento e
de composição. Com que sonhais?
Eu
– Sonho que tudo o que acabais de dizer é mais especioso do que sólido.
Deixemos isso. Ensinastes, dizeis, o acompanhamento e a composição?
Ele – Sim.
Eu – E não sabíeis absolutamente nada?
Ele – Palavra de honra que não. E é por isso que havia piores do que eu: os que acreditavam saber alguma coisa (...) (O Sobrinho..., página 52)
Neste
trecho podemos observar indícios claros de uma postura cética em Rameau
quando se pronuncia que “ignora-se para onde uma coisa vai
[conseqüência?], de onde outra vem [causa?] (...)” ou ainda melhor ao
afirmar que “na verdade seria preferível ignorar do que saber tão pouco e
tão mal”. A desconfiança cética toma-se na esfera do conhecimento.
A INVERSÃO GERAL DA ORDEM
O rompimento com a “meta-física” do referido texto diderotiano
desestabiliza as dicotomias freqüentes do discurso filosófico: Rameau
deixa “aos palermas a viagem pelo nevoeiro” afinal ele é
“terra-a-terra”. O devaneio “meta-físico” é atacado ferozmente e a
natureza também é presa pela desconfiança.
A natureza comete “lapsos estranhos” (mais indícios de desconfiança,
descrença, suspensão) e o mundo social também é criticado. Rameau não se
intromete, mas reflete que há “homens que regurgitam tudo, enquanto
outros, dotados de um estômago tão inoportuno quanto o deles, não têm o
que pôr entre os dentes”. Crítica social? Incômodo político? Melhor...
reflexo da disposição viva para análise da “terra”.
As
divisões desestruturadas pelas incansáveis contestações de Rameau
tendem a descontrolar o esforço sistemático de confiança na razão do
personagem Diderot: a transformação realizada por Diderot do discurso
teórico em metáforas literárias em O Sobrinho de Rameau
discute nesta forma alegórica a discussão premente da inconsistência
(inconfiabilidade) nos pressupostos finalistas da racionalidade. Romano
salienta que “ser e nulidade dissolvem-se no dever-ser, no devir” e esta
afirmação corrobora a passagem de contestação de Rameau:
Ele – Mas se a natureza é tão poderosa quanto sábia, por que não os fez tão bons quanto grandes?
Eu
– Mas não vedes que com tal raciocínio inverteis a ordem geral, e que,
se neste mundo tudo fosse excelente, nada seria excelente?
Ele
– Tendes razão. O ponto importante é que vós e eu sejamos, e que
sejamos vós e eu. Que tudo o mais se arranje como puder. A melhor ordem
das coisas, em minha opinião, é aquela onde eu deveria estar, e dane-se o
mais perfeito dos mundos, se eu não estiver nele. Prefiro ser, e mesmo
ser um argumentador impertinente, do que não ser. (O Sobrinho..., página 45)
No trecho a desconfiança na natureza provoca a “inversão da ordem
geral” e garante o ponto principal da inversão diderotiana. Romano
comenta que “o mundo onde eu deveria estar é a “melhor” ordem, ou seja,
“vous” e “moi” estão ao mesmo tempo em permanente equivalência”
garantindo que não se tenha a estipulação exterior de uma verdade.
A alteração dos predominantes – propõe o texto – gera o desconforto, a
desestabilidade do embasamento teórico na Razão. O contrário da Razão do
personagem de Diderot figura-se na loucura de Rameau: a Não-Razão. Esta
loucura, tão infame e tão presente, é justamente o “melhor papel”. Da
Razão, o que poderia se poderia esperar?: “Parece que aí dentro há
alguma coisa [os punhos quase quebrando a testa], mas, por mais que
esmurre e sacuda, não sai nada!”, diz Rameau desolado. Mas sua convicção
é mais viva: “(...) a coisa muda de figura quando se trata de sentir,
de elevar-se, pensar e pintar com cores fortes (...)”, é a posição
empirista que reclama notoriedade.
Deste modo, a inversão dos valores (inversão dos mundos) e a crítica ao racionalismo se entrelaçam e como coloca:
Ele
– (...) num assunto tão controvertido como o dos costumes, nada há que
seja absoluta, essencial e geralmente verdadeiro ou falso, mas que se
deve ser aquilo que o interesse deseja que sejamos: bom ou mau, sábio ou
louco, decente ou ridículo, honesto ou vicioso. Se, por acaso, a
virtude tivesse conduzido à fortuna, eu teria sido virtuoso ou simulado a
virtude como um outro qualquer. Quiseram-me ridículo, assim me fiz.
Quanto aos vícios, a despesa ficou por conta da natureza. Quando digo
vicioso, digo-o apenas para falar vossa língua, pois, se viéssemos a nos
explicar, poderia ocorrer que chamásseis de vício o que chamo de
virtude, e virtude o que chamo de vício. (O Sobrinho..., página 63-4)
Assim, Rameau subverte posições e dançante, ri da Razão amofinada nos
pressupostos teóricos e suposições gigantes de intelectualidade. Sua
filosofia não é romanesca, de alma singular, é simplesmente a sabedoria
de Salomão: “beber bons vinhos, saborear petiscos delicados, rolar
sobre belas mulheres, repousar em camas macias”.
E
ri na face da pretensa verdade, afinal nada mais útil que a mentira. E
ri, pois “ri melhor quem ri por último”, dança porque ignora o abismo
das profundezas e descrê numa verdade impossível.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DIDEROT, Denis. O sobrinho de Rameau. In DIDEROT, Denis. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
GUINSBURG, Jacó. Denis Diderot. São Paulo: Revista USP. Dezembro / Janeiro / Fevereiro: 1990.
ROMANO, Roberto. Diderot, Penélope da Revolução. São Paulo: Revista USP. Março / Abril / Maio: 1989.
|