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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 07 de maio de 2012 a 13 de maio de 2012 – ANO 2012 – Nº 525Discriminação mapeada
Abordagens étnicas e raciais revelam que negros são menos assistidos pelo sistema de saúde
Pesquisas
conduzidas nos últimos 25 anos pelo Núcleo de Estudos de População
(Nepo) da Unicamp apontam que a discriminação racial presente na
sociedade determina diferentes padrões de atendimento e tratamento de
saúde para a população negra no país.
Cenários
referentes a nascimentos prematuros, mortalidade infantil, adulta e
materna, morbidade, entre outros, apresentam altas disparidades quando
relacionados à raça e cor. “Existe uma posição de desvantagem da
população negra com relação à população branca justificada por uma
condição social inferior, mas não explicada toda e somente por isso. Tem
um componente de discriminação racial também”, sustenta a socióloga,
demógrafa e professora Estela Maria Garcia Pinto da Cunha, coordenadora
do Nepo.
“Apesar do histórico de
vulnerabilidade social em que viveram e vivem os negros, desde a época
da escravatura, estudos mostram que mesmo controlando variáveis
socioeconômicas, como renda e educação, existe, na saúde, um diferencial
quando os comparamos aos brancos. Há um efeito racial, sim”, enfatiza a
estudiosa, responsável por linhas de pesquisas e investigações inéditas
nesta área.
Pioneiro no país na
abordagem étnica e racial na demografia, o Nepo vem subsidiando nos
últimos 25 anos a implementação de programas e políticas públicas para
reverter este cenário, que se comprova com números oficiais do
Ministério da Saúde (MS) e do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE).
O risco de morte
por desnutrição é, por exemplo, 90% maior entre crianças negras do que
entre brancas (MS, 2005). E a chance de morrer por tuberculose, entre
adultos, é 70% maior nesta mesma comparação. Ainda de acordo com as
estatísticas, o índice de mulheres que passam por mais de seis consultas
no pré-natal é de 62% entre mães de nascidos vivos brancos e de apenas
37% entre mães de nascidos vivos negros. As seis consultas de pré-natal
são a recomendação mínima da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Ademais, a mortalidade de crianças negras até 5 anos de vida é de 36 por
mil, diminuindo para 28 por mil ao se tratar de crianças brancas (IBGE,
2006).
Tais dados – analisados,
comparados e explicitados pelos pesquisadores do Núcleo – têm alertado
movimentos sociais e o governo para a formulação e execução de políticas
públicas e programas cujo objetivo principal é a equidade de raça e cor
da população no sistema de saúde do país. “Começamos, entre 1985 e
1986, um projeto de demografia pioneiro no país sobre a dinâmica da
população negra. Nele, foram pesquisadas a mortalidade infantil, a
nupcialidade e a fecundidade da população negra, sempre comparando com a
população branca. E aí começam a ser observadas diferenças de
comportamento demográfico. A estimativa de mortalidade infantil começa,
por exemplo, a provocar uma discussão junto com o movimento negro, que
passa a reivindicar a introdução do quesito raça/cor nos bancos de
informações de saúde”, lembra a demógrafa e doutora em saúde coletiva,
que atua desde 1985 na Unicamp.
A
apresentação e o peso destes primeiros dados levaram o Nepo a ser
requerido nacionalmente, contextualiza Estela da Cunha, que integra
desde 2004, ao lado da demógrafa Elza Berquó, o Comitê Técnico de Saúde
da População Negra, do Ministério da Saúde.
A
partir desta linha de pesquisa, os movimentos sociais organizados
começam a discutir com os estudiosos do Núcleo as melhores formas de
coleta e análise das informações com o recorte étnico-racial. “Eles
acompanham este processo junto com a academia. Formam-se, então, comitês
nacionais, estaduais e municipais de saúde da população negra, da qual o
Nepo passa a fazer parte. Nós também apoiamos uma demanda por uma
política nacional subsidiando o processo com evidências de iniquidade e
racismo no tratamento da população negra no sistema de saúde”, evoca
Estela da Cunha.
A socióloga
refere-se à Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, que
traz como marca o reconhecimento do racismo, das desigualdades
étnico-raciais e do racismo institucional como determinantes sociais
para as condições de saúde dos negros no país. A Política, aprovada em
2006 pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), é uma resposta do governo
federal às desigualdades em saúde da população negra. “Esta é a política
pública que tem que ser cumprida. Ela enumera os objetivos e
estratégias em todo o sistema de saúde para se chegar a uma igualdade
racial”, acentua.
A demógrafa também
cita a criação, em 2003, pelo governo federal, da Secretaria Especial de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) como outro
importante marco para os avanços da equidade racial no país. “A Seppir
passa a atuar de modo transversal em todas as esferas do governo. Sua
criação representa uma conquista muito importante do movimento negro”,
evidencia.
Apesar dos avanços, Estela
da Cunha reconhece que o desafio ainda é grande, sobretudo em uma
sociedade na qual a desigualdade racial sempre foi silenciosa e não
declarada: “O primeiro fator para superamos essas desigualdades é o
reconhecimento do racismo”, conclui. “E, no campo da saúde, a
implementação plena das políticas específicas. O Sistema Único de Saúde
[SUS] deve continuar com sua política universal, mas também tem de estar
atento às especificidades da população negra”, acrescenta.
Várias
doenças e agravos prevalentes na população negra merecem abordagem
específica na saúde, de acordo com a pesquisadora. Entre as
geneticamente determinadas estão a anemia falciforme e a deficiência de
glucose-6-fosfato desidrogenase (G6PD). Há também as adquiridas em
condições desfavoráveis e de tratamento dificultado, entre as quais a
desnutrição, tuberculose, hipertensão arterial, diabetes melito e
abortos sépticos. A Política Nacional já reconhece que o SUS deve
oferecer tratamento diferenciado à população negra para tais doenças e
agravos.
Transição
A
transição demográfica pela qual o Brasil vem passando, com a queda na
taxa de fecundidade feminina, também se mantém com diferenciais raciais
entre brancos e negros, como demonstra o Relatório Anual das
Desigualdades Raciais no Brasil de 2009-2010, produzido pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com a colaboração de
pesquisadores do Nepo. O relatório cobre o período de 1986 a 2008.
Em
1986, a Taxa de Fecundidade Total (TFT) das mulheres brancas era 34%
inferior à das pretas e pardas. O TFT caiu para 29% em 1993 e 25% em
2008. “Verifica-se uma tendência de aproximação, mas, ao mesmo tempo, se
mantém certo diferencial”, analisa Estela da Cunha.
De
acordo com ela, dentre os possíveis condicionantes para a manutenção
deste diferencial estão as desigualdades no acesso aos serviços de saúde
da mulher, o acesso a contraceptivos e a capacidade de negociação da
mulher negra com relação ao uso destes métodos com seus parceiros.
Pesquisas e capacitação desencadeiam efeito multiplicador
Em
1996, o Nepo conduziu projeto de pesquisa de caráter multicêntrico
sobre morbimortalidade feminina. O projeto foi realizado por centros de
pesquisas de várias regiões do país e produziu efeito multiplicador na
pesquisa científica brasileira, conforme Estela da Cunha. “Estabelecemos
intercâmbios com centros de pesquisa ou equipes de pesquisadores nas
diversas unidades da Federação com o objetivo de capacitar recursos
humanos para estudos sobre a saúde da mulher. Foi uma experiência muito
rica, com um efeito multiplicador bastante efetivo”, relata.
Também
nesta linha, o Núcleo realizou, em 2008, o primeiro Curso de
Metodologia de Pesquisa em Saúde da População Negra, em parceria com a
Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. O objetivo foi capacitar
trabalhadores do SUS e integrantes de movimentos sociais de modo a
estimular o desenvolvimento de pesquisa empírica nesta área. “O curso
também foi pioneiro, embora não tenha tido um impacto nacional como
projeto de saúde reprodutiva. Foi uma experiência inovadora porque
instrumentalizava com técnicas metodológicas os profissionais para
melhorar a cobertura e qualidade da coleta e aprofundar a investigação
sobre a saúde da população negra”, explicou. O Nepo ainda desenvolveu
dois módulos de Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da
Mulher, estudo que foi coordenado por Elza Berquó no Centro Brasileiro
de Análise e Planejamento (Cebrap).