De marqueteiro a ideólogo
Ao projetar seu pragmatismo radical na política e
na ética, João Santana orienta a prática partidária do PT
02 de dezembro de 2012 | 2h 08
MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO | É PROFESSORA TITULAR DO DEPARTAMENTO DE
FILOSOFIA DA USP E DA UNICAMP - O Estado de S.Paulo
A mácula da escravidão persiste, prenhe de racismo:
João Paulo Cunha, condenado pelo STF, alega que Joaquim Barbosa foi indicado
"porque era compromisso nosso, do PT e do Lula, de reparar a injustiça
histórica com os negros"; isto é, foi nomeado pela cor e não por mérito. A
escolha do ministro soa como favor não retribuído, esquecendo-se Cunha de que
"não se pode ser grato com a toga" (Ayres Britto). Para compreender a
ofensa ao juiz, cabe lembrar o sentido moderno da escravidão, o modo como se
entranhou na sociedade brasileira. Há tempos, desenvolvi a tese de que a
escravidão moderna fora constitutiva do sistema capitalista, inerente à
correlata ordem sociopolítica. Articulada ao capital nos mercados europeus, a
produção nas colônias expandiu-se em termos absolutos: a grande propriedade
abriu vastos recursos fundiários e a escravidão alimentou, veloz, a fonte
inexaurível do trabalhador cuja expropriação deu-se de chofre, ao passo que
esse processo corria, lento, nos mercados europeus. Esse nexo essencial entre
escravidão e capital desdobrou-se de ponta a ponta na cultura brasileira.
Nesse caldo, o grupo dominante não teve limites ao
poder, aliado a célere enriquecimento. Para cronistas do século 19,
"ganhar dinheiro é seu único motto, sua única palavra de ordem",
compreendendo "importação de mercadorias adulteradas, tráfico de moeda
falsa e contrabando de escravos", fortunas feitas por "meios
desonestos, por assassínios, furtos e estelionatos". Joaquim Nabuco
sustenta: "Em nossos dias tudo parece sujeito a transações. A alma humana
é posta em leilão".
O nó entre ética do vale-tudo e escravidão atingiu
os homens livres e pobres. Alijados da produção mercantil e da posse fundiária,
carentes de firmes vínculos coletivos, tornaram-se andarilhos solitários em
violento universo de penúria. Os nexos entre ricos (fazendeiros, políticos,
mercadores, governantes) e remediados (sitiantes, clientes, agregados,
capangas) teceram, como favor, a dominação pessoal: suas contraprestações
entrelaçam dádivas de amizade e parentesco, apoio econômico e amparo social,
retribuídos por adesão política. Daí resultam lealdades e compromissos que
estiolam a consciência do mundo social, concebível apenas mediante a encarnação
do poder transfigurado em benefício para o subalterno. Firma-se a brutal
alienação assim produzida: as figuras do favor não provêm do patrimonialismo
obsoleto, como se aventa, mas da prepotência moderna.
O compadrio move essa engrenagem no Estado: o que
de melhor fazer, a um afilhado, "senão provê-lo de um emprego
público?" Fácil é manter influências "criando novos cargos e novos
funcionários", notam cronistas do século 19. Monta-se a máquina
administrativa, motriz da corrupção, induzida por nosso ilusório pacto
federativo. No Império, a técnica de concentrar fundos locais no Executivo
central exauriu os municípios a ponto de seus vereadores empregarem recursos
próprios em obras públicas. Esse empenho de valores privados na esfera estatal
tinha retorno coerente: "Se uso meus bens para encargos oficiais, por que
não usar os do governo para meus fins?". Hoje, aprimorando esse vezo, os
edis "negociam" recursos, mas nada colocam de seu e pilham, não raro,
algo do butim.
Essa sinopse das práticas autoritárias ilumina a
trama de favores e dinheiros, multiplicada a partir de um núcleo forte, em
redes de parceria e cumplicidade. Hoje, pretensos benefícios atraem multidões
fiéis ao benfeitor imaginário que, de fato, as aprisiona. A propaganda amplia o
confisco da autonomia, suscitando a adesão mecânica ao herói protetor.
Personagem mítico, é produzido por marqueteiros, como João Santana, que se
esmera em transformar Dilma em Dama de Ferro e Haddad em Jovem Turco. Essa
retórica opera na aparência: exemplo disso é o fantasma da "nova classe
média", endividada na compra fácil de produtos industrializados, mas
carente de moradia, face às condições leoninas do Minha Casa, Minha Vida - o
candidato ouve, do agente bancário, o conselho de procurar uma
"empreiteira acostumada a trabalhar com a Caixa". Empresários, não o
povo, são beneficiários desses programas. Essa sofística chega a pautar a
imprensa, que tragou a falaciosa invenção do "novo" apenso a Haddad,
cria de Lula, formidável sobrevivente e chefe autoritário à moda antiga,
mantido pela oligarquia sindical e outras mais rançosas. Nada de inédito nesses
vultos e em outros delfins herdeiros de vetustas linhagens.
Entretanto, o devaneio de João Santana, em recente
entrevista - conjugar Dilma presidente, Lula governador, Haddad prefeito -, não
conta com o real e perigoso desenlace da onipotência - a morte do rei, ou do
pai - com os anseios da progênie minando a hegemonia do protetor. Lula sitiado
pela corrupção de seus ministros e auxiliares dá asas aos afilhados cobiçosos e
justifica romper seus votos de lealdade. Doutro lado, o patrono escuda-se e
desampara os que perderam serventia. No traiçoeiro utilitarismo que manipula
sentimento e razão, frágil é a generosidade de quem dá, tíbia a gratidão de
quem recebe. Ao projetar os espectros do pragmatismo radical na política e na
ética, valendo-se do imaginário vulgar e dos vícios da oligarquia brasileira,
Santana orienta a prática partidária e passa de marqueteiro a ideólogo do PT.
Seu sectarismo lhe permite reduzir as sessões do STF a "reality
shows", atribuindo-lhes, assim, a falta de escrúpulos dessa mórbida exploração
da curiosidade. Mais grave, esse espetáculo fere preceitos constitucionais,
como o direito à privacidade, à intimidade e à honra. Essa violência arbitrária
conjugada a alvos financeiros espezinha a dignidade humana. A analogia de
Santana, portanto, atribui a violação das garantias inalienáveis da pessoa
àqueles que receberam o mister de zelar pela Constituição. Essa arrogância o
conduz ao "dever" de alertar os ministros contra o tóxico
"excesso midiático", veneno do qual ele próprio abusa.