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“Antes não tinha, agora tem...” (19/12/2011)
Por João Marcos Coelho
Semana
passada, já meio enojado com a irritante massificação da campanha da
Prefeitura na Globo em torno do mote do título acima – portanto,
investindo caminhões de dinheiro em publicidade –, feita para elogiar só
os bemfeitos da atual administração, ouvi de relance uma
particularmente idiota. Antes não tinha, agora tem... cultura de graça
na Virada Cultural – era mais ou menos isso que o simpático e jovem
casal de atores proclamava aos incautos paulistanos. Há!,
pensei, demorou mas o círculo se fechou. Jamais entendi direito este
conceito furadíssimo de virada cultural, onde você espreme milhares de
eventos e gasta milhões de reais em apenas 24 horas. Caramba, é um
autêntico “pseudoevento”. Isto é, o evento que só começa a existir de
fato quando é alardeado por uma máquina de propaganda e relações
públicas, porque serve a um propósito que lhe é exterior. No caso da
Virada Cultural, a meta é clara: o importante é dizer que 3.899.465
pessoas assistiram aos 2.789 eventos simultâneos em 9.879 pontos da
cidade (os números são fictícios).
A
palavra “pseudoevento”, claro, não é minha. Foi cunhada meio século
atrás por um historiador chamado Daniel Boorstin. Ele escreveu o livro
“The Image: a Guide to Pseudo-Events in America” em 1961 e publicou-o no
ano seguinte. Estava impactado pelo primeiro debate de candidatos
presidenciais norte-americanos transmitido pela televisão, ocorrido em
1960. Aquela foi a primeira ocasião em que a TV decidiu uma eleição. No
caso, a do moço de fino trato John Kennedy, que pôs a nocaute, no estilo
Barcelona-Santos ou Messi-Neymar, o já então feioso Richard Nixon.
Vivemos
a “era do artifício”, em que ilusões pré-fabricadas se tornaram forças
dominantes na sociedade. A vida pública compõe-se de pseudoeventos, ou
seja, acontecimentos encenados só para produzir uma contrafação dos
reais acontecimentos.
Seus formuladores jamais concentram-se na
qualidade do evento em si, mas jogam todo o seu esforço para “vendê-lo”
ao grande público como fundamental, decisivo, revolucionário. No reino
das pessoas, gerou classes de ilusionistas como os políticos e as
celebridades – estão aí as campanhas políticas, a corrupção endêmica e
as celebridades que não sabem fazer absolutamente nada e mesmo assim
posam de “importantes” na mídia. Qualquer semelhança com a nossa
realidade política e cultural, portanto, não é mera coincidência.
Pondo
os pingos nos is, o que importa é a versão do evento, e não o evento em
si. Um publicitário brasileiro muito bem-sucedido costumava dizer – não
sei se ainda o faz, mas a frase provavelmente nem é dele, pois a
propaganda é googlemaníaca por natureza, só recicla –, que “não existe
opinião pública, mas opinião publicada”. Daí o interesse da regulação da
mídia por aqui ou a intenção, agora concretizada, da reeleita
presidente argentina Cristina Kirchner de controlar o fornecimento de
papel-jornal em seu país. Melhor do que a opinião publicada é quando se
tem apenas uma – e sempre a mesma – única publicada ad aeternam.
É
curioso que Boorstin, um historiador de direita, tenha detectado com
tamanha clarividência um processo de empulhação que hoje é um verdadeiro
tsunami, centenas de vezes modernamente denunciado pela esquerda.
Vivemos mesmo bombardeados com pseudonotícias, pseudoeventos,
pseudocultura.
Uma vez perguntaram ao filósofo Bertrand Russell
por que a vida de Kant havia sido tão tediosa, a ponto de nenhum
biógrafo encontrar nela nada de interessante. Sua resposta foi
surpreendente – e faria sorrir Daniel Boorstin. Ele disse mais ou menos o
seguinte: uma vida tranqüila é característica da maioria dos grandes
homens; seus prazeres não são os que soam “excitantes”; nenhuma grande
conquista intelectual ou artisticamente importante é possível sem um
trabalho persistente, difícil e que absorve todas as suas forças –
portanto, não produz um grande pseudoevento.
Bem, não é possível
mesmo deixar de conviver com slogans do tipo “antes não tinha, agora
tem...” ou “nunca, na história deste país” e até mesmo “estou convencido
de que”. Faz parte do jogo democrático, dirão os mais otimistas. Mas
você pode fazer no fim de cada dia 5 minutos de reflexão silenciosa
sobre os pseudoeventos que te atingiram. Se anotar num caderno, em pouco
tempo você terá um tratado. Bom Natal, bela passagem de ano e um 2012
com faro para detectar – e deletar – os pseudoeventos.
Tchim-tchim.
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