ROBERTO ROMANO
"Todo o poder emana do povo." Esta verdade tem sido aviltada em nossa terra pelos que assumem todas as magistraturas. Após 30 anos, ainda sentimos a presença das causas geradoras do golpe institucional que desgraçou nossa República. Entre elas, avulta o insensível Congresso Nacional, dirigido não raro para fins estranhos ao país.
Após o segundo governo Vargas, tivemos o bloqueio sistemático a Jânio Quadros e a chantagem contra João Goulart. Nestas horas, o Legislativo só ensinou desobediência e medo aos cidadãos. Hoje, ele apresenta um insulto após outro à ordem civil, provoca de modo cálido o braço militar. Sendo apenas funcionários eminentes da vida pública, os atuais ocupantes do nosso Estado, em plano federativo, imaginam-se investidos pelo direito divino. É preciso que eles se convertam à pátria comum.
Não é lícito aos dirigentes usurpar o poder soberano que só ao povo pertence. Citemos Rousseau. O filósofo não pode ser perseguido pelo Congresso, lépido quando intimida jornalistas e acadêmicos livres, lento no corretivo dos seus membros indecorosos. Diz o "Contrato Social": o déspota se coloca acima das próprias leis. Incontáveis atos despóticos situam nossos representantes acima da cidadania. Como esta última é o verdadeiro soberano, os políticos praticam, no cotidiano, um golpe contínuo. Eles ensinam tirania no plenário. "Um tirano", para Rousseau, "pode não ser déspota, mas um déspota é sempre um tirano". Um magistrado que age em benefício próprio trai a República. Se o faz em sessão secreta, a covardia do sigilo cobre esta vergonha. Com isso nossa gente é iniciada na pedagogia da má-fé. E nenhuma comunhão política vive sem a confiança na palavra.
A imprudência de muitos parlamentares gera, pois, anarquia. Por causa deles "todos os simples cidadãos, repostos de direito em sua liberdade natural, estão forçados, mas não obrigados, a obedecer" (Rousseau). Legisladores que rasgam as leis subvertem a sociedade política, cujo princípio é a igual dignidade de todos. Tais políticos imaginam que na urna ocorre um pacto servil. Nele, o candidato a déspota diria ao eleitor: "Estabeleço contigo uma convenção ficando tudo a teu cargo e tudo em meu proveito, convenção essa a que obedecerei enquanto me aprouver e que tu observarás enquanto for do meu agrado" (sempre Rousseau).
Daí a arrogância dos que, eleitos, pensam ter adquirido um feudo. Vasta camada de acadêmicos coloca-se sob as ordens destes tiranetes. Motivo? "A verdade não leva à fortuna, e o povo não dá embaixadas, cátedras ou pensões" (lúcido Rousseau!). Após votar em benefício próprio (marca absoluta de tirania), somem os membros do Congresso, abandonando o interesse público. Ficam desvalidos os trabalhadores, ludibriados os empresários honestos, desiludidos os cientistas e técnicos, atormentados os mestres. Os poderosos eleitos não dirigem as classes para o universal, ajudam a ampliar o fosso entre riqueza e miséria. "Essas duas condições, inseparáveis naturalmente, são ambas funestas ao bem comum –de uma saem os fautores da tirania e da outra os tiranos. É sempre entre elas que se faz o tráfico da liberdade pública; uma compra e a outra a vende" ("Contrato Social"). Milhões conseguidos entre riquíssimos servem para distribuir tostões nas campanhas eleitorais onde o povo soberano, faminto, vende sua dignidade livre por bagatelas.
Rousseau recorda o costume antigo, forte entre os gregos, de "confiar o estabelecimento das leis aos estrangeiros". Vamos seguir o exemplo helenico, importando legisladores? Se o preço e a qualidade do produto nacional não correspondem ao justo, a importação de similares estrangeiros baixa o preço, melhora a qualidade. Nesta concorrência, talvez nossos parlamentares voltem ao plenário e às comissões, legislando em proveito coletivo.Mas não os culpemos por todos os nossos males. Eles são o resultado do absenteísmo político a que nos acostumamos desde a ditadura castrense. Ainda Rousseau traz a lição: "O arrefecimento do amor à pátria, o interesse particular, a grandeza dos Estados, os abusos do governo fizeram com que se imaginasse o recurso dos deputados ou representantes do povo". Deputados são apenas funcionários do povo soberano. Caso contrário, desempenham o papel de usurpadores. Ninguém estima quem exerce esta função desprezível por natureza.
Finalizemos com Rousseau: "O povo inglês pensa ser livre e muito se engana, pois só o é durante a eleição dos parlamentares; uma vez eleitos, ele é escravo, não é nada". Brasileiros: mudando-se o nome, a fábula narra a nossa vida política. Mas o Parlamento, quando unido ao soberano, é sagrado. Cidadãos, civis e militares, devemos manter a prudência e a coragem de recusar os golpes de Estado. É mais eficaz não reconduzir ao Congresso os vendilhões ali instalados. Por sua causa, nossos filhos e netos não podem sofrer as violências dos torturadores, a censura à imprensa e todo o inferno imanente aos regimes ditatoriais. Com serenidade e firmeza, usemos o voto para afastar o despotismo, assegurando a democracia, tão vital quanto o ar que respiramos.
ROBERTO ROMANO, 47, filósofo, é professor titular de filosofia política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
"Todo o poder emana do povo." Esta verdade tem sido aviltada em nossa terra pelos que assumem todas as magistraturas. Após 30 anos, ainda sentimos a presença das causas geradoras do golpe institucional que desgraçou nossa República. Entre elas, avulta o insensível Congresso Nacional, dirigido não raro para fins estranhos ao país.
Após o segundo governo Vargas, tivemos o bloqueio sistemático a Jânio Quadros e a chantagem contra João Goulart. Nestas horas, o Legislativo só ensinou desobediência e medo aos cidadãos. Hoje, ele apresenta um insulto após outro à ordem civil, provoca de modo cálido o braço militar. Sendo apenas funcionários eminentes da vida pública, os atuais ocupantes do nosso Estado, em plano federativo, imaginam-se investidos pelo direito divino. É preciso que eles se convertam à pátria comum.
Não é lícito aos dirigentes usurpar o poder soberano que só ao povo pertence. Citemos Rousseau. O filósofo não pode ser perseguido pelo Congresso, lépido quando intimida jornalistas e acadêmicos livres, lento no corretivo dos seus membros indecorosos. Diz o "Contrato Social": o déspota se coloca acima das próprias leis. Incontáveis atos despóticos situam nossos representantes acima da cidadania. Como esta última é o verdadeiro soberano, os políticos praticam, no cotidiano, um golpe contínuo. Eles ensinam tirania no plenário. "Um tirano", para Rousseau, "pode não ser déspota, mas um déspota é sempre um tirano". Um magistrado que age em benefício próprio trai a República. Se o faz em sessão secreta, a covardia do sigilo cobre esta vergonha. Com isso nossa gente é iniciada na pedagogia da má-fé. E nenhuma comunhão política vive sem a confiança na palavra.
A imprudência de muitos parlamentares gera, pois, anarquia. Por causa deles "todos os simples cidadãos, repostos de direito em sua liberdade natural, estão forçados, mas não obrigados, a obedecer" (Rousseau). Legisladores que rasgam as leis subvertem a sociedade política, cujo princípio é a igual dignidade de todos. Tais políticos imaginam que na urna ocorre um pacto servil. Nele, o candidato a déspota diria ao eleitor: "Estabeleço contigo uma convenção ficando tudo a teu cargo e tudo em meu proveito, convenção essa a que obedecerei enquanto me aprouver e que tu observarás enquanto for do meu agrado" (sempre Rousseau).
Daí a arrogância dos que, eleitos, pensam ter adquirido um feudo. Vasta camada de acadêmicos coloca-se sob as ordens destes tiranetes. Motivo? "A verdade não leva à fortuna, e o povo não dá embaixadas, cátedras ou pensões" (lúcido Rousseau!). Após votar em benefício próprio (marca absoluta de tirania), somem os membros do Congresso, abandonando o interesse público. Ficam desvalidos os trabalhadores, ludibriados os empresários honestos, desiludidos os cientistas e técnicos, atormentados os mestres. Os poderosos eleitos não dirigem as classes para o universal, ajudam a ampliar o fosso entre riqueza e miséria. "Essas duas condições, inseparáveis naturalmente, são ambas funestas ao bem comum –de uma saem os fautores da tirania e da outra os tiranos. É sempre entre elas que se faz o tráfico da liberdade pública; uma compra e a outra a vende" ("Contrato Social"). Milhões conseguidos entre riquíssimos servem para distribuir tostões nas campanhas eleitorais onde o povo soberano, faminto, vende sua dignidade livre por bagatelas.
Rousseau recorda o costume antigo, forte entre os gregos, de "confiar o estabelecimento das leis aos estrangeiros". Vamos seguir o exemplo helenico, importando legisladores? Se o preço e a qualidade do produto nacional não correspondem ao justo, a importação de similares estrangeiros baixa o preço, melhora a qualidade. Nesta concorrência, talvez nossos parlamentares voltem ao plenário e às comissões, legislando em proveito coletivo.Mas não os culpemos por todos os nossos males. Eles são o resultado do absenteísmo político a que nos acostumamos desde a ditadura castrense. Ainda Rousseau traz a lição: "O arrefecimento do amor à pátria, o interesse particular, a grandeza dos Estados, os abusos do governo fizeram com que se imaginasse o recurso dos deputados ou representantes do povo". Deputados são apenas funcionários do povo soberano. Caso contrário, desempenham o papel de usurpadores. Ninguém estima quem exerce esta função desprezível por natureza.
Finalizemos com Rousseau: "O povo inglês pensa ser livre e muito se engana, pois só o é durante a eleição dos parlamentares; uma vez eleitos, ele é escravo, não é nada". Brasileiros: mudando-se o nome, a fábula narra a nossa vida política. Mas o Parlamento, quando unido ao soberano, é sagrado. Cidadãos, civis e militares, devemos manter a prudência e a coragem de recusar os golpes de Estado. É mais eficaz não reconduzir ao Congresso os vendilhões ali instalados. Por sua causa, nossos filhos e netos não podem sofrer as violências dos torturadores, a censura à imprensa e todo o inferno imanente aos regimes ditatoriais. Com serenidade e firmeza, usemos o voto para afastar o despotismo, assegurando a democracia, tão vital quanto o ar que respiramos.
ROBERTO ROMANO, 47, filósofo, é professor titular de filosofia política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).