sábado, 9 de junho de 2012

Artigo antigo, achado por mim por acaso na rede. O tema é atual, pois fala do segredo na votação do Congresso e da tirania dos parlamentares, que somada à tirania do Executivo e dos juízes, faz do Brasil uma...tirania oligárquica, nada mais. Não consegui recuperar o nome do texto e nem o jornal onde ele foi publicado. Nomes não interessam quando as coisas continuam tremendas e terríveis.

ROBERTO ROMANO

"Todo o poder emana do povo." Esta verdade tem sido aviltada em nossa terra  pelos que assumem todas as magistraturas. Após 30 anos, ainda sentimos a  presença das causas geradoras do golpe institucional que desgraçou nossa República. Entre elas, avulta o insensível Congresso Nacional, dirigido não raro para fins  estranhos ao país.

Após o segundo governo Vargas, tivemos o bloqueio sistemático a Jânio Quadros e a  chantagem contra João Goulart. Nestas horas, o Legislativo só ensinou desobediência  e medo aos cidadãos. Hoje, ele apresenta um insulto após outro à ordem civil,  provoca de modo cálido o braço militar. Sendo apenas funcionários eminentes da  vida pública, os atuais ocupantes do nosso Estado, em plano federativo,  imaginam-se investidos pelo direito divino. É preciso que eles se convertam  à pátria comum.

 Não é lícito aos dirigentes usurpar o poder soberano que só ao povo pertence.  Citemos Rousseau. O filósofo não pode ser perseguido pelo Congresso, lépido  quando intimida jornalistas e acadêmicos livres, lento no corretivo dos seus  membros indecorosos. Diz o "Contrato Social": o déspota se coloca acima das  próprias leis. Incontáveis atos despóticos situam nossos representantes acima  da cidadania. Como esta última é o verdadeiro soberano, os políticos praticam, no cotidiano, um golpe contínuo. Eles ensinam tirania no plenário. "Um tirano", para Rousseau, "pode não ser déspota,  mas um déspota é sempre um tirano". Um magistrado que age em benefício próprio  trai a República. Se o faz em sessão secreta, a covardia do sigilo cobre esta vergonha. Com isso nossa gente é iniciada na pedagogia da má-fé. E nenhuma comunhão política vive sem a confiança na palavra.

A imprudência de muitos parlamentares gera, pois, anarquia. Por causa deles "todos os  simples cidadãos, repostos de direito em sua liberdade natural, estão forçados, mas  não obrigados, a obedecer" (Rousseau). Legisladores que rasgam as leis subvertem a  sociedade política, cujo princípio é a igual dignidade de todos. Tais políticos  imaginam que na urna ocorre um pacto servil. Nele, o candidato a déspota diria ao eleitor: "Estabeleço contigo uma convenção  ficando tudo a teu cargo e tudo em meu proveito, convenção essa a que obedecerei  enquanto me aprouver e que tu observarás enquanto for do meu agrado" (sempre Rousseau).

Daí a arrogância dos que, eleitos, pensam ter adquirido um feudo. Vasta camada de acadêmicos coloca-se sob as ordens destes tiranetes. Motivo? "A verdade não leva à fortuna, e o povo não dá embaixadas, cátedras ou pensões" (lúcido Rousseau!). Após votar em benefício próprio (marca absoluta de tirania), somem os membros do  Congresso, abandonando o interesse público. Ficam desvalidos os trabalhadores,  ludibriados os empresários honestos, desiludidos os cientistas e técnicos,  atormentados os mestres. Os poderosos eleitos não dirigem as classes para o universal,  ajudam a ampliar o fosso entre riqueza e miséria. "Essas duas condições, inseparáveis  naturalmente, são ambas funestas ao bem comum –de uma saem os fautores da  tirania e da outra os tiranos. É sempre entre elas que se faz o tráfico da  liberdade pública; uma compra e a outra a vende" ("Contrato Social").  Milhões conseguidos entre riquíssimos servem para distribuir tostões nas  campanhas eleitorais onde o povo soberano, faminto, vende sua dignidade  livre por bagatelas.

Rousseau recorda o costume antigo, forte entre os gregos, de "confiar o  estabelecimento das leis aos estrangeiros". Vamos seguir o exemplo helenico,  importando legisladores? Se o preço e a qualidade do produto nacional não  correspondem ao justo, a importação de similares estrangeiros baixa o preço,  melhora a qualidade. Nesta concorrência, talvez nossos parlamentares voltem  ao plenário e às comissões, legislando em proveito coletivo.Mas não os culpemos  por todos os nossos males. Eles são o resultado do  absenteísmo político a que nos acostumamos desde a ditadura castrense.  Ainda Rousseau traz a lição: "O arrefecimento do amor à pátria, o interesse  particular, a grandeza dos Estados, os abusos do governo fizeram com que se  imaginasse o recurso dos deputados ou representantes do povo". Deputados são  apenas funcionários do povo soberano. Caso contrário, desempenham o papel de  usurpadores. Ninguém estima quem exerce esta função desprezível por natureza.

Finalizemos com Rousseau: "O povo inglês pensa ser livre e muito se engana, pois só o é durante a eleição dos parlamentares; uma vez eleitos, ele é escravo,  não é nada". Brasileiros: mudando-se o nome, a fábula narra a nossa vida política.  Mas o Parlamento, quando unido ao soberano, é sagrado. Cidadãos, civis e militares,  devemos manter a prudência e a coragem de recusar os golpes de Estado. É mais eficaz  não reconduzir ao Congresso os vendilhões ali instalados. Por sua causa, nossos  filhos e netos não podem sofrer as violências dos torturadores, a censura à  imprensa e todo o inferno imanente aos regimes ditatoriais. Com serenidade e  firmeza, usemos o voto para afastar o despotismo, assegurando a democracia,  tão vital quanto o ar que respiramos.

ROBERTO ROMANO, 47, filósofo, é professor titular de filosofia política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).