Cantos (e outros sons)
para todos os cantos
Projeto de biocomputação põe na rede patrimônio de vocalizações de animais legado por Jacques Vielliard
O relevante
patrimônio de vocalizações de animais deixado pelo ornitólogo e
professor da Unicamp Jacques Marie Edme Vielliard, falecido em 2010,
pode, agora, ser acessado gratuitamente pela internet por pesquisadores e
interessados em todo o mundo. Vocalizações são sons emitidos pelos
animais para se comunicarem, como os cantos dos pássaros e baleias, os
uivos dos caninos, o bramir dos elefantes e crocodilos e os ruídos dos
insetos.
Antigo sonho do cientista, o
acervo virtual pertence à Fonoteca Neotropical “Jacques Vielliard”
(FNJV), do Instituto de Biologia (IB). Incrementada constantemente com
novas gravações pelos seguidores do ornitólogo e demais estudiosos, a
Fonoteca está, atualmente, entre as cinco maiores coleções sonoras do
mundo. Há gravações de todos os grupos de vertebrados, como peixes,
anfíbios, répteis, aves e mamíferos, e de alguns grupos de
invertebrados, como insetos e aracnídeos. Ao todo, são cerca de 40 mil
vocalizações, das quais mais de 11 mil já estão digitalizadas e
disponíveis no endereço http://proj.lis.ic.unicamp.br/fnjv.
O
acervo virtual, que passa por processo de aprimoramento, foi
viabilizado com o emprego de pesquisas de ponta na área da computação e
da biologia. O projeto promete produzir efeito facilitador e
multiplicador na pesquisa científica em bioacústica por meio do uso de
ferramentas computacionais e conceitos relacionados à preservação,
compartilhamento e enriquecimento de dados.
A
coordenação é da docente Claudia Bauzer Medeiros, do Instituto de
Computação (IC), e do pesquisador Luís Felipe Toledo, colaborador do
Museu de Zoologia do IB e um dos curadores da Fonoteca. As três
principais agências de fomento de pesquisa do país – Fapesp (Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), CNPq (Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e Capes (Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) – estão financiando o
projeto.
Claudia Medeiros explica que
o sistema online permite o acesso às vocalizações e aos dados ou
elementos sobre elas, entre os quais, os nomes das espécies, locais,
datas e horas das gravações. Uma singularidade do projeto, de acordo com
a docente, é a possibilidade do “enriquecimento destes dados”. Este
enriquecimento permite que novas informações sejam geradas ao integrar
os elementos das vocalizações a outras bases. Será possível, assim,
atrelar os sons emitidos pelos animais a diversas variáveis do meio
ambiente.
Ela esclarece que a partir
dos dados já armazenados, os usuários poderão coletar informações
adicionais, disponíveis, por exemplo, nos portais da Nasa (National
Aeronautics and Space Administration), Inpe (Instituto Nacional de
Pesquisas Espaciais), IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística) e Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária).
Deste modo, os dados das vocalizações podem ser relacionados com a
temperatura da época em que foi gravado determinado som, com a
velocidade do vento daquele momento e com uma série de elementos
climatológicos associados àquela época.
Essas
informações serão primordiais para futuras pesquisas na área da
bioacústica e biodiversidade porque, essencialmente, as espécies são
influenciadas pelos fatores climáticos, complementa o pesquisador Felipe
Toledo. “Há bichos que só cantam se estiver chovendo. Mas só sabemos
isso a posteriori, ou seja, depois da observação. Se não temos estes
dados fica difícil inferir qualquer análise. Muitos bichos param de
cantar enquanto está ventando muito. Até terremoto estimula a
vocalização de animais, como é o caso dos elefantes. Com as novas
ferramentas, conseguiremos desenvolver pesquisas e saber mais sobre a
história de vida das espécies”, exemplifica o cientista. “Para
pesquisadores interessados no efeito do clima sobre o comportamento
animal isso será muito importante. Eventualmente, eles nem precisarão ir
a campo para coletar os dados que já estarão disponíveis aqui na
coleção. Isso facilita, agiliza e potencializa a pesquisa científica”,
prevê Felipe Toledo.
Estudos
sobre a comunicação sonora dos animais são imprescindíveis para a
preservação da biodiversidade. O biólogo da Unicamp explica que,
conforme a ciência desvenda aspectos do comportamento dos animais,
criam-se cada vez mais condições para propor ações no sentido de
preservá-los. “Temos em nosso acervo gravações de pássaros muito comuns
em nosso entorno, como os pardais, mas também de bichos raros, que
poucas pessoas conseguiram gravar. É o caso de uma onça parda gravada na
natureza. Em muitos dos nossos registros antigos, talvez não se
encontre mais o bicho naquela localidade em que o seu som foi gravado
devido à devastação do meio ambiente”, expõe.
E-Science
De
acordo com Claudia Medeiros há muitos estudos de fronteira envolvidos
no desenvolvimento do sistema online. “A Unicamp está sendo mais uma vez
pioneira com esta iniciativa, pelas características inovadoras do
sistema, talvez o primeiro no mundo a se preocupar com alguns tipos de
enriquecimento de dados. Na verdade, a disponibilização digital do
acervo já era prevista pelo professor Vielliard, mas o projeto está
acrescentando funcionalidades muito além do que ele imaginava. A
digitalização é extremamente importante, inclusive para efeito de
preservação das gravações que foram feitas. E, agora, nós não só estamos
disponibilizando o acervo digital, mas criando e oferecendo métodos
relacionados ao que chamamos de e-Science”, revela.
O
termo empregado pela docente refere-se à utilização de pesquisas em
computação para a obtenção de resultados científicos aplicados a outras
áreas do conhecimento. “Na e-Science pesquisadores da computação
realizam investigações para ajudar cientistas de outras áreas a
desenvolverem suas pesquisas de forma melhor, mais rápida ou mais
eficiente e até diferente. Ao mesmo tempo, a pesquisa em computação é
acelerada pelos desafios apresentados na colaboração com outros
cientistas. Um dos aspectos chaves em e-Science é o compartilhamento,
porque compartilhando dados, outras pessoas, de outras áreas, vão poder
fazer usos nunca esperados”, conceitua a docente, que coordena no IC o
Laboratório de Sistemas de Informação.
Aprimoramentos
Para
se chegar ao sistema atual foram quase dois anos de pesquisas
conduzidas pelo doutorando do IC Daniel Cintra Cugler, bolsista Fapesp
orientado por Claudia Medeiros. Na World Wide Web (www) há oito meses
para testes, o acervo virtual já foi acessado por pesquisadores de mais
de 40 países. Há versões para o português, inglês e o francês - a língua
materna de Vielliard.
A pesquisa
para o desenvolvimento do acervo online já gerou dois artigos
científicos. “Organizar todos os dados para que pudéssemos desenvolver
pesquisa em computação foi o primeiro passo do nosso trabalho. Agora,
nós estamos focados no enriquecimento destes dados. Nosso objetivo é
cada vez mais aprimorar as funções oferecidas pelo sistema”, afirma
Cugler.
O
pesquisador garante que estarão disponíveis, até o final deste ano,
novas ferramentas para permitir o enriquecimento e a integração dos
dados. Conforme Cugler, por enquanto, o sistema permite o acesso às
informações sobre o acervo a qualquer pessoa. Além disso, pesquisadores e
demais interessados podem também solicitar aos curadores, via
formulário eletrônico, os sons digitalizados. É possível ainda fazer o
depósito de novas vocalizações.
Para o
público não especializado em ciência, mas interessado nas vocalizações,
há amostras de gravações disponíveis, como a do sabiá-laranjeira, nome
popular da espécie Turdus rufiventris. Gravado por Vielliard, o pássaro é
um dos mais conhecidos do Brasil, identificado pela cor de ferrugem do
ventre e por seu canto melodioso durante o período reprodutivo.
Rigor
O
procedimento de impedir o acesso direto às vocalizações, de certo modo
restritivo, é um rigor que certamente seria elogiado por Vielliard. A
pesquisadora e gerente técnica da Fonoteca, Milena Corbo, lembra que
essa era umas das grandes preocupações do professor. Corbo trabalhou com
o ornitólogo por cerca de seis anos, sendo, inclusive orientada por ele
na sua pesquisa de mestrado.
No
momento, ela é a responsável pelo trabalho meticuloso de converter as
gravações analógicas para o formato digital, atividade que desenvolve
desde o final de 2007. “Tudo que tem sido feito era uma vontade do
Jacques. Esse desejo dele está acontecendo até com muito mais incremento
do que ele esperava. Isso é muito importante porque era sua vontade
disponibilizar este rico material, porém com certa restrição. Ele não
gostaria de ver o seu acervo sendo usado indiscriminadamente, sobretudo
para fins comerciais”, lembra.
■ Publicações
-
Cugler D. C., Medeiros C. B., Toledo L. F. Managing animal sounds -
some challenges and research directions in Proceedings V eScience
Workshop - XXXI Brazilian Computer Society Conference, 2011.
- Cugler D. C., Medeiros C. B., Toledo L. F. An architecture for retrieval of animal sound recordings based on context variables in Concurrency and computation: practice and experience.
- Cugler D. C., Medeiros C. B., Toledo L. F. An architecture for retrieval of animal sound recordings based on context variables in Concurrency and computation: practice and experience.