Terça-feira, 27 de Novembro de 2012
Saber pensar sobre problemas morais e políticos
Como pensar correctamente sobre conflitos morais e
políticos? Que princípios e métodos nos podem ajudar a sair da mera opinião
mais ou menos irreflectida? Como podemos aprender com a história e a filosofia,
para analisar proficientemente estas questões e raciocinar melhor sobre elas?
Um aspecto curioso do cientificismo é a ideia de que tudo o que não é ciência não tem qualquer interesse nem valor cognitivo. Logo, é irrelevante o conhecimento da história e da filosofia, porque essas coisas não são científicas. A ironia é que quem assim pensa depois raciocina sobre questões políticas e morais à toa, sem qualquer conhecimento do que distingue um raciocínio plausível nestas áreas de um raciocínio ingénuo.
O primeiro aspecto importante do raciocínio moral e político é que se trata de saber lidar com conflitos de interesses. O segundo é que não há um tribunal de última instância a que possamos recorrer: somos só nós, entre nós, tentando raciocinar da melhor maneira possível sobre os nossos conflitos de interesses.
O que o primeiro aspecto quer dizer é que se não há conflitos inequívocos de interesses nada há para discutir. Uma parte das pseudodiscussões políticas e éticas que ocorrem nos meios de comunicação têm coisa nenhuma por objecto de discussão. O que quero dizer com isto é o seguinte: imagine-se que há pessoas no meu país que querem ter a liberdade para comer pão com caca de cão. Eu acho isso um nojo e se me convidarem para tomar o pequeno-almoço com eles morre-me logo uma tia-avó para eu ter uma boa desculpa para não ir. Mas há aqui algum conflito inequívoco de interesses? Não. Há certamente um conflito vago e irrelevante: eu preferia que não houvesse pessoas destas na minha sociedade. Mas isto é apenas um interesse vago da minha parte. Desde que eu não tenha de conviver com elas e desde que elas não me obriguem a participar dos seus curiosos banquetes e lanches, não há qualquer conflito inequívoco.
Este aspecto está relacionado de perto com o segundo. Dizer que não há um tribunal de última instância para decidir conflitos morais e políticos é uma maneira engraçada de tentar explicar que quando temos um conflito real de interesses temos de levar muito a sério o que as pessoas que estão em conflito connosco realmente pensam. Isto significa que é completamente irrelevante o que nós achamos que elas deviam pensar mas não pensam ou deviam preferir mas não preferem, pois o conflito emerge precisamente do facto de elas pensaram o que pensam e terem as preferências que têm, e não de concordarem comigo. Se concordassem, não haveria qualquer conflito de interesses. Ora, não há maneira alguma de apelar a uma instância superior que ambos possamos reconhecer excepto exactamente os raciocínios que ambos reconhecermos de facto como correctos. É por isso que é irrelevante que eu apele a raciocínios realmente correctos e factos realmente comprováveis quando sei muito bem que os meus opositores rejeitam precisamente tais raciocínios e tais factos. Quando o meu opositor realmente pensa que há extraterrestres no subsolo e resiste a todas as minhas tentativas de lhe demonstrar que não há, tenho de levar muito a sério a sua crença.
Mas, então, há alguma maneira de resolver conflitos de interesses reais e profundos quando as pessoas rejeitam o que me parece óbvio, factual, científico, sensato? Sim, há. Desde que ambas as partes não estejam de má-fé, podem fazer um exercício simples de pensamento ético e político imparcial: o chamado véu da ignorância, usado famosamente por Rawls na sua obra Uma Teoria da Justiça, publicada em 1971 e que eu explico brevemente no meu livro Sete Ideas Filosóficas que Toda a Gente Deveria Conhecer (mas cuja leitura o cientificista rejeita precisamente porque a filosofia não é ciência).
O exercício é o seguinte: eu imagino que vou organizar o enquadramento legal da minha sociedade, sabendo que haverá pessoas como eu — sensatas, lúcidas, bonitas e boas na cama, científicas e informadas, que sempre que vêem uma fotografia de Einstein têm um microorgasmo — mas que também haverá malucos que pensam que há extraterrestres no subsolo e que jamais se deixarão reconhecer pelas mais sólidas provas científicas de que no subsolo há muita coisa, mas não há extraterrestres. O truque agora é este: eu não sei se serei como sou — sensato, científico e tudo isso — ou um tresloucado. Apenas sei que serei uma dessas pessoas, porque essas pessoas existem na minha sociedade. É este o véu de ignorância: eu ignoro se serei uma pessoa ou outra, mas sei que haverá pessoas dos dois tipos.
Sob este véu da ignorância, como vou ordenar política e juridicamente a minha sociedade? Fazendo este simples exercício torna-se óbvio que não tem qualquer relevância que os tresloucados realmente sejam tresloucados e não tenham razão. Porque eu poderei ser uma dessas pessoas. Assim, a minha preocupação, sob este véu da ignorância, é fazer as coisas de tal maneira que, seja eu um ou outro, me sinta tão bem nessa sociedade quanto possível, sem prejudicar o outro (porque também poderei ser o outro!).
Este tipo de pensamento é muito importante porque quando não se compreende o que está em causa, pensa-se sempre em termos de excluir da sociedade as pessoas que são tão diferentes de nós que nos causa horror que existam. Só que isso é irrelevante. O que conta é que elas realmente existem. Se são sensatas ou tolas é irrelevante.
A segunda coisa que conta, dado aceitarmos plenamente a existência dessas pessoas e o seu direito a existir, é pensar como integrá-las de maneira a que se sintam tão bem quanto possível, sem com isso provocar danos inequívocos a terceiros que não queiram por elas ser prejudicados. Ora, no caso dos extraterrestres, tal como no caso brincalhão do cocó de cão, vê-se logo que não há qualquer conflito inequívoco. O conflito é meramente vago, pois se eu for um dos tolos, é para mim um imenso custo não me ver reconhecido na minha própria sociedade; mas se eu for um sensato, não me custa nada escolher bem os meus amigos e não conviver com os tolos. Não há um conflito inequívoco. Há apenas preconceitos em jogo e luta irracional pelo poder. Nada mais.
Isto é precisamente o que acontece no caso da homeopatia, no caso do ensino do criacionismo aos filhos dos criacionistas, no caso do casamento entre homossexuais e em muitos outros. Em nenhum destes casos há conflitos inequívocos de interesses. De uma parte há apenas um interesse vago em excluir da nossa sociedade pessoas de um certo tipo. Do outro, há uma lesão inequívoca do seu direito a desenvolverem os seus estilos de vida sem prejudicar seja quem for que não queira ser por eles prejudicado. Os homeopatas, tal como os homossexuais casados ou os criacionistas, não interferem de maneira inequívoca na minha vida desde que não me obriguem a usar a homeopatia, não me obriguem a casar com um homem nem a conviver com casais de homossexuais, não me obriguem a ensinar o criacionismo aos meus próprios filhos.
Infelizmente, a maior parte dos debates éticos e políticos populares são pseudodebates. São-no porque, em primeiro lugar, não há conflitos inequívocos de interesses; pelo contrário, há interesses perfeitamente harmonizáveis e coordenáveis. Em segundo lugar, são pseudodebates porque um debate real é uma tentativa imparcial de descobrir a verdade. Estes pseudodebates não são tal coisa. São apenas uma tentativa de empurrar a sociedade na direcção que queremos, direcção essa que envolve a tentativa de destruição dos modos de vida e crenças que não nos agradam. É por isso que algumas pessoas vêem com grande inquietação a legalização da homeopatia ou do criacionismo: porque isso é dar um passo na direcção que eles não querem. O reverso da medalha são as pessoas que não querem os homossexuais casados — isso certamente não os prejudica inequivocamente, mas eles reagem muito intensamente porque sentem que isso empurra a sociedade numa direcção que não querem. Em ambos os casos, há uma ilusão profunda porque em ambos os casos se pensa que se não dermos esse passo as pessoas que gostaríamos que não existissem desaparecem por magia. Mas não desaparecem. Por isso, o melhor é aceitar que realmente existem e dar-lhes as melhores condições que imparcialmente formos capazes de conceber.
Termino com uma nota. Os males da humanidade resultam em grande parte de atitudes irracionais ou pelo menos irreflectidas. Quando as pessoas prejudicam as outras porque querem empurrar a sociedade numa dada direcção estão a ser tolas porque o objectivo visado é, a médio e longo prazo, acabar com as pessoas de que não gostamos. Não queremos que se ensine criacionismo nas escolas, porque temos a esperança de que assim acabem os criacionistas no futuro. Não queremos o reconhecimento oficial da homeopatia, porque assim temos a esperança de que no futuro não existam pessoas que escolham a homeopatia. Esta atitude é estúpida por duas razões. Em primeiro lugar, porque hoje os criacionistas e os homeopatas existem e não vão mudar de ideias; mesmo que não deixem descendentes depois de terem morrido, nessa altura também nós estaremos mortos, pelo que é irrelevante para nós se nessa altura haverá criacionistas ou não — isso é um problema dos nossos descendentes, e não nosso. Em segundo lugar, porque basta um conhecimento elementar da história da humanidade para compreender que os seres humanos são pródigos a inventar tolices para-religiosas. Por isso, mesmo que consigamos que nas gerações futuras não existam mais pessoas que acreditam numa dada tolice — como não existem ou quase não existem hoje pessoas que acreditam nos efeitos místicos da energia vital da electricidade, como no séc. XIX — outras tolices acabarão por surgir. O gosto pelo numinoso está inscrito nos nossos genes e só alguns de nós se libertam disso, mas não temos mais direito a viver harmoniosamente na nossa própria sociedade do que os outros.
Um aspecto curioso do cientificismo é a ideia de que tudo o que não é ciência não tem qualquer interesse nem valor cognitivo. Logo, é irrelevante o conhecimento da história e da filosofia, porque essas coisas não são científicas. A ironia é que quem assim pensa depois raciocina sobre questões políticas e morais à toa, sem qualquer conhecimento do que distingue um raciocínio plausível nestas áreas de um raciocínio ingénuo.
O primeiro aspecto importante do raciocínio moral e político é que se trata de saber lidar com conflitos de interesses. O segundo é que não há um tribunal de última instância a que possamos recorrer: somos só nós, entre nós, tentando raciocinar da melhor maneira possível sobre os nossos conflitos de interesses.
O que o primeiro aspecto quer dizer é que se não há conflitos inequívocos de interesses nada há para discutir. Uma parte das pseudodiscussões políticas e éticas que ocorrem nos meios de comunicação têm coisa nenhuma por objecto de discussão. O que quero dizer com isto é o seguinte: imagine-se que há pessoas no meu país que querem ter a liberdade para comer pão com caca de cão. Eu acho isso um nojo e se me convidarem para tomar o pequeno-almoço com eles morre-me logo uma tia-avó para eu ter uma boa desculpa para não ir. Mas há aqui algum conflito inequívoco de interesses? Não. Há certamente um conflito vago e irrelevante: eu preferia que não houvesse pessoas destas na minha sociedade. Mas isto é apenas um interesse vago da minha parte. Desde que eu não tenha de conviver com elas e desde que elas não me obriguem a participar dos seus curiosos banquetes e lanches, não há qualquer conflito inequívoco.
Este aspecto está relacionado de perto com o segundo. Dizer que não há um tribunal de última instância para decidir conflitos morais e políticos é uma maneira engraçada de tentar explicar que quando temos um conflito real de interesses temos de levar muito a sério o que as pessoas que estão em conflito connosco realmente pensam. Isto significa que é completamente irrelevante o que nós achamos que elas deviam pensar mas não pensam ou deviam preferir mas não preferem, pois o conflito emerge precisamente do facto de elas pensaram o que pensam e terem as preferências que têm, e não de concordarem comigo. Se concordassem, não haveria qualquer conflito de interesses. Ora, não há maneira alguma de apelar a uma instância superior que ambos possamos reconhecer excepto exactamente os raciocínios que ambos reconhecermos de facto como correctos. É por isso que é irrelevante que eu apele a raciocínios realmente correctos e factos realmente comprováveis quando sei muito bem que os meus opositores rejeitam precisamente tais raciocínios e tais factos. Quando o meu opositor realmente pensa que há extraterrestres no subsolo e resiste a todas as minhas tentativas de lhe demonstrar que não há, tenho de levar muito a sério a sua crença.
Mas, então, há alguma maneira de resolver conflitos de interesses reais e profundos quando as pessoas rejeitam o que me parece óbvio, factual, científico, sensato? Sim, há. Desde que ambas as partes não estejam de má-fé, podem fazer um exercício simples de pensamento ético e político imparcial: o chamado véu da ignorância, usado famosamente por Rawls na sua obra Uma Teoria da Justiça, publicada em 1971 e que eu explico brevemente no meu livro Sete Ideas Filosóficas que Toda a Gente Deveria Conhecer (mas cuja leitura o cientificista rejeita precisamente porque a filosofia não é ciência).
O exercício é o seguinte: eu imagino que vou organizar o enquadramento legal da minha sociedade, sabendo que haverá pessoas como eu — sensatas, lúcidas, bonitas e boas na cama, científicas e informadas, que sempre que vêem uma fotografia de Einstein têm um microorgasmo — mas que também haverá malucos que pensam que há extraterrestres no subsolo e que jamais se deixarão reconhecer pelas mais sólidas provas científicas de que no subsolo há muita coisa, mas não há extraterrestres. O truque agora é este: eu não sei se serei como sou — sensato, científico e tudo isso — ou um tresloucado. Apenas sei que serei uma dessas pessoas, porque essas pessoas existem na minha sociedade. É este o véu de ignorância: eu ignoro se serei uma pessoa ou outra, mas sei que haverá pessoas dos dois tipos.
Sob este véu da ignorância, como vou ordenar política e juridicamente a minha sociedade? Fazendo este simples exercício torna-se óbvio que não tem qualquer relevância que os tresloucados realmente sejam tresloucados e não tenham razão. Porque eu poderei ser uma dessas pessoas. Assim, a minha preocupação, sob este véu da ignorância, é fazer as coisas de tal maneira que, seja eu um ou outro, me sinta tão bem nessa sociedade quanto possível, sem prejudicar o outro (porque também poderei ser o outro!).
Este tipo de pensamento é muito importante porque quando não se compreende o que está em causa, pensa-se sempre em termos de excluir da sociedade as pessoas que são tão diferentes de nós que nos causa horror que existam. Só que isso é irrelevante. O que conta é que elas realmente existem. Se são sensatas ou tolas é irrelevante.
A segunda coisa que conta, dado aceitarmos plenamente a existência dessas pessoas e o seu direito a existir, é pensar como integrá-las de maneira a que se sintam tão bem quanto possível, sem com isso provocar danos inequívocos a terceiros que não queiram por elas ser prejudicados. Ora, no caso dos extraterrestres, tal como no caso brincalhão do cocó de cão, vê-se logo que não há qualquer conflito inequívoco. O conflito é meramente vago, pois se eu for um dos tolos, é para mim um imenso custo não me ver reconhecido na minha própria sociedade; mas se eu for um sensato, não me custa nada escolher bem os meus amigos e não conviver com os tolos. Não há um conflito inequívoco. Há apenas preconceitos em jogo e luta irracional pelo poder. Nada mais.
Isto é precisamente o que acontece no caso da homeopatia, no caso do ensino do criacionismo aos filhos dos criacionistas, no caso do casamento entre homossexuais e em muitos outros. Em nenhum destes casos há conflitos inequívocos de interesses. De uma parte há apenas um interesse vago em excluir da nossa sociedade pessoas de um certo tipo. Do outro, há uma lesão inequívoca do seu direito a desenvolverem os seus estilos de vida sem prejudicar seja quem for que não queira ser por eles prejudicado. Os homeopatas, tal como os homossexuais casados ou os criacionistas, não interferem de maneira inequívoca na minha vida desde que não me obriguem a usar a homeopatia, não me obriguem a casar com um homem nem a conviver com casais de homossexuais, não me obriguem a ensinar o criacionismo aos meus próprios filhos.
Infelizmente, a maior parte dos debates éticos e políticos populares são pseudodebates. São-no porque, em primeiro lugar, não há conflitos inequívocos de interesses; pelo contrário, há interesses perfeitamente harmonizáveis e coordenáveis. Em segundo lugar, são pseudodebates porque um debate real é uma tentativa imparcial de descobrir a verdade. Estes pseudodebates não são tal coisa. São apenas uma tentativa de empurrar a sociedade na direcção que queremos, direcção essa que envolve a tentativa de destruição dos modos de vida e crenças que não nos agradam. É por isso que algumas pessoas vêem com grande inquietação a legalização da homeopatia ou do criacionismo: porque isso é dar um passo na direcção que eles não querem. O reverso da medalha são as pessoas que não querem os homossexuais casados — isso certamente não os prejudica inequivocamente, mas eles reagem muito intensamente porque sentem que isso empurra a sociedade numa direcção que não querem. Em ambos os casos, há uma ilusão profunda porque em ambos os casos se pensa que se não dermos esse passo as pessoas que gostaríamos que não existissem desaparecem por magia. Mas não desaparecem. Por isso, o melhor é aceitar que realmente existem e dar-lhes as melhores condições que imparcialmente formos capazes de conceber.
Termino com uma nota. Os males da humanidade resultam em grande parte de atitudes irracionais ou pelo menos irreflectidas. Quando as pessoas prejudicam as outras porque querem empurrar a sociedade numa dada direcção estão a ser tolas porque o objectivo visado é, a médio e longo prazo, acabar com as pessoas de que não gostamos. Não queremos que se ensine criacionismo nas escolas, porque temos a esperança de que assim acabem os criacionistas no futuro. Não queremos o reconhecimento oficial da homeopatia, porque assim temos a esperança de que no futuro não existam pessoas que escolham a homeopatia. Esta atitude é estúpida por duas razões. Em primeiro lugar, porque hoje os criacionistas e os homeopatas existem e não vão mudar de ideias; mesmo que não deixem descendentes depois de terem morrido, nessa altura também nós estaremos mortos, pelo que é irrelevante para nós se nessa altura haverá criacionistas ou não — isso é um problema dos nossos descendentes, e não nosso. Em segundo lugar, porque basta um conhecimento elementar da história da humanidade para compreender que os seres humanos são pródigos a inventar tolices para-religiosas. Por isso, mesmo que consigamos que nas gerações futuras não existam mais pessoas que acreditam numa dada tolice — como não existem ou quase não existem hoje pessoas que acreditam nos efeitos místicos da energia vital da electricidade, como no séc. XIX — outras tolices acabarão por surgir. O gosto pelo numinoso está inscrito nos nossos genes e só alguns de nós se libertam disso, mas não temos mais direito a viver harmoniosamente na nossa própria sociedade do que os outros.