Pedintes, não
Uma das práticas mais detestáveis, comum no Portugal que desapareceu
com a queda do decrépito Estado Novo, foi a instituição do «pedido».
Numa sociedade profundamente desigual e impedida pela censura de
alimentar a vigilância pública, a distribuição de cargos, empregos e
sinecuras raramente era feita de um modo transparente, pela via do
mérito premiado ou do concurso público. O caminho mais habitual, em
particular nos cargos de nomeação oficial ou na área dos serviços, era
seguir-se a via hereditária, sendo rotineira a prática do nepotismo, ou
então da amizade associada a relações de proximidade e de dependência.
Fora desta modalidade, a distribuição de lugares era quase sempre
obtida, com poucas exceções, através do «pedido» e do consequente
«favor». A proteção ou a promoção eram imploradas a quem tinha
capacidade para as conceder, ou para influenciar o decisor, fazendo-o em
regra às custas de outros candidatos com patrocinadores menos fortes ou
com manchas curriculares causadas, por exemplo, por atitudes sociais
menos conformistas.
A prática do «pedido» é, inevitavelmente, caraterística de países
dotados de um sistema de corrupção endémico ou com uma opinião pública
frágil. Por isso foi entre nós claramente reduzida após a instauração da
democracia – se excetuarmos locais, regiões ou áreas profissionais onde
a estreiteza da dimensão e a rede de cumplicidades mantiveram ou
ampliaram as relações de dependência –, transformando-se numa atitude
juridicamente impugnável e socialmente condenada no plano ético. No
entanto, na atual situação de crise social, de quebra de direitos, de
redução da proteção do Estado, de precariedade do trabalho, de um certo
«salve-se quem puder», parece inevitável que regresse, sendo mais um
sinal de fragilização da dignidade individual e de retorno a um quadro
de desigualdade. Combater este regresso da «cultura do pedido» é pois
uma forma de resistência perante a destruição dos direitos individuais e
dos valores democráticos. Uma atitude particularmente importante quando
é o próprio governo do país, ao pôr-se de joelhos, suplicante de chapéu
na mão diante dos governantes dos Estados mais ricos, e ao mostrar-se
incapaz de exigir um tratamento de igualdade, a colocar-nos, a todos nós
e ao nosso país retangular de quase nove séculos de idade, na condição
de pedintes.