segunda-feira, 19 de novembro de 2012

RECOMENDO CALOROSAMENTE A LEITURA DO ARTIGO ABAIXO. NELE, FICA BEM CLARA A CULPA DOS QUE, ANTES DOS GOVERNOS PETISTAS, DEFENDIAM A UNIVERSIDADE PÚBLICA E DE QUALIDADE. AGORA, POR REALISMO, ELES SE ESPOJAM NAS TRATATIVAS COM O LOBBY DAS "UNIVERSIDADES" PRIVADAS. COMO SEMPRE DIGO, A POLISSEMIA IMPERA NAQUELE VOCÁBULO. ELAS SÃO FEDORENTAS E CONTRÁRIAS À HIGIENE DO CORPO E DO ESPIRITO. MAS OS QUE ANTIGAMENTE AS CRITICAVAM HOJE RECOLHEM SEUS TOSTÕES, DEIXANDO OS MILHÕES PARA OS "PEDAGOGOS" DO "ENSINO"PRIVADO, INTERESSANTE QUE NÃO VEMOS CRÍTICA OU POSIÇÃO CONTRÁRIA DOS QUE REFESTELAM NA CAPES, NO CNPq E QUEJANDOS. SIGNA TEMPORUM....





Doutor é quem faz doutorado?

“Nosso amigo, humilhado e ofendido, é portador do título de doutor carimbado pelo MEC. Já o algoz que estava diante dele é um sujeito que se orgulha de ter o primário incompleto. Mas todos os chamam de ‘doutor’ e tiram o chapéu com deferência ao vê-lo passar”

Bajonas Teixeira de Brito Junior*

O artigo do jurista Março Antônio Ribeiro Tura, interessante e bem fundamentado, tanto histórica quanto juridicamente, poderia esgotar a questão que colocamos no título acima, respondendo: Doutor é quem faz doutorado. É assim que ele intitula um artigo que recomendo e assinaria embaixo, se ele já não viesse assinado. Pois bem. O artigo, como eu disse, poderia esgotar a questão, se a questão se esgotasse em seus aspectos históricos e jurídicos não havendo outros a considerar. E, na verdade, no seu texto está bastante claro que o autor se propôs a considerar o assunto sob um ângulo bem determinado. Seria impróprio pedir que dissesse mais do que disse. E disse bem.

Um dos motivos, aliás, para ler o artigo está justamente nas suas primeiras frases, que versam sobre um encaminhamento que, se bem sucedido, será um bom serviço prestado ao país: “No momento em que nós do Ministério Público da União nos preparamos para atuar contra diversas instituições de ensino superior por conta do número mínimo de mestres e doutores, eis que surge (das cinzas) a velha arenga de que o formado em Direito é Doutor.”

O fato é que as faculdades privadas já dominam 90% da educação superior no país. Em grande parte dessas instituições temos verdadeiros campos de extermínio intelectual, com exploração intensiva de docentes submetidos a baixos salários, ao vexame dos pontos eletrônicos, e ao terrorismo das demissões. O chamado aperfeiçoamento é coisa impensável. O docente se afastar para fazer mestrado ou doutorado e a instituição pagar o salário durante esse período? Nem sonhar.

O artigo de Ribeiro Tura é uma demolição bem conduzida das falsas pretensões de muitos que querem ostentar o título de doutor. Aponta para um avanço, para a ruptura com a tradição nacional, que deu mais valor ao caráter de privilégio de certos diplomas (inicialmente, e desde muito tempo, ao de direito e ao de medicina), fazendo do advogado e do médico “doutores”. Sem passar pelos cursos de mestrado e, ainda menos, encarar os quatro ou cinco anos de doutorado, médicos e advogados ostentam um título que não têm. São doutores sem doutorado.

Mas a questão está em que, ao mostrar isso, Tura nos deixa um problema, a saber, a necessidade de indagar sobre a origem da legitimidade social que têm esses doutores sem doutorado. O fato é que o tratamento de doutor dispensado ao advogado e ao médico é prática generalizada, corriqueira e aceite como totalmente legitima pela maioria esmagadora dos brasileiros. De onde provém isso? Gosto de lembrar sempre, sobre esse assunto, uma passagem do livro de Ina Von Binzer, a educadora alemã que viveu alguns anos no Brasil nos primeiros anos da década de 80 do século XIX. Ela escreveu em 1881: “O Dr. Rameiro veio buscar-me. Não sei por que o chamam de ‘doutor’ e duvido muito que ele próprio saiba encontrar a razão desse tratamento. A única explicação verossímil seria a de que todo brasileiro bem colocado na vida já nasce com direito a esse título, e por um lado pareceria uma falta de modéstia; e por outro seria estúpido exigir que eles o fossem conquistar à custa de estudos tão difíceis quanto desnecessários.” (Von Binzer, Ina, Os Meus Romanos – Alegrias e Tristezas de uma Educadora Alemã no Brasil, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. Carta de 27 de maio de 1881)

Pois é. O Dr. Rameiro foi um rico senhor de terras e de escravos, que empregou a alemã Ina como preceptora de seus filhos numa fazenda no interior. A “doutoridade”, para usar um termo inventado por Guimarães Rosa, que entendia do assunto, foi no Brasil antes de tudo um atributo social. Tendo nascido doutores, como os condes nascem condes, seria absurdo exigir que fossem conquistar um título de doutor “à custa de estudos tão difíceis quanto desnecessários”.  Por isso, chamaremos esses de “doutores de berço”.  Homens como o Doutor Olavo Setúbal, o Doutor Roberto Marinho, o Doutor Assis Chateaubriand, o Doutor Antônio Ermírio de Moraes, o Doutor José Mindlin,  bibliófilo célebre, que transitava muito à vontade entre as brochuras e as capas duras. Pois aí temos alguns brasileiros bem nascidos, “doutores de berço”. Esses não precisaram cursar doutorado, dispensar esforços supérfluos aos estudos, defender tese.

De outro lado, temos os advogados e médicos (hoje, os diversos profissionais de saúde, como os dentistas, que começaram sendo chamados de “práticos”, subiram discretamente à categoria de dentistas, e, logo depois, galgaram a posição de odontólogos para, mais uma vez, sempre com modéstia, se tornarem doutores. É uma categoria que vai longe. Sempre calada, com a máscara cobrindo a boca, sem fazer alarde). Boa parte dos estudantes de direito e medicina era composta de indivíduos provenientes de setores pequenos burgueses no Brasil no século XIX e XX, remediados o suficiente para mandar um filho para a faculdade, mas na média pouco abastados. Gilberto Freyre descreve as acomodações parcas dos quartos de estudantes da época, praticamente sem móveis, uma cadeira faltando perna ali, um catre surrado para dormir acolá, uma vela para iluminar os cubículos, alimentação muito deficiente. E conclui: uma miséria. Ocorre que esses doutores, conseguiam os seus diplomas de bacharel e recebiam um anel de doutor. Já que essa história é antiga, parece razoável chamá-los de “doutores por tradição”, deixando subentendido que não é o mérito, nem a norma, nem o berço que os torna doutores.

Principalmente durante a segunda metade do século XX e nas suas últimas duas décadas, começou a formação em massa para doutores no Brasil. Os seguimentos mais baixos da classe média puderam, aos poucos, ter acesso ao tão cobiçado título, com esforço, suor, sangue e lágrimas (na formatura). Esses são os doutores acadêmicos. Hoje, seus títulos já abarrotam o mercado e, com isso, dado que as faculdades privadas, 90% das instituições de ensino superior, que deveriam empregá-los, têm carta branca do MEC para não fazê-lo, esses doutores estão, cada vez mais, destinados ao limbo social. No último concurso para gari no Rio, como mostramos no artigo 45 doutores disputam vaga de gari no RJ, uma tendência sinistra se verifica: as carradas de doutores acadêmicos formados nas últimas décadas e impedidos de ingressar como docentes no ensino superior se tornam supérfluos. Portanto, como tiveram bolsas de quatro anos, a maioria, resta concluir que o Estado vem queimando recursos públicos investidos em formação de alto nível. E para vantagem de quem? Das instituições de ensino superior privadas. No mínimo, a mão-de-obra abundante reduz os salários, já ínfimos. E a mão-de-obra doutoral é abundante porque as privadas não são obrigadas a contratá-los…

Em resumo, temos o doutor de berço (que já nasce doutor), o doutor de tradição (que cursou direito ou a área de saúde) e o doutor acadêmico, o doutor que fez doutorado (que, eventualmente, pode ser graduado em direito ou medicina, é claro).

A valoração social, o status e a dignidade conferidos a cada uma dessas categorias, é o inverso do esperado numa sociedade democrática moderna, que, em tese, valoriza o esforço próprio e rejeita os privilégios. Ao contrário, dentro das coordenadas particulares da história brasileira resulta que quem carrega a doutoridade de berço vale muito mais; quem a conquistou numa graduação de medicina ou direito já é um doutor com “d” minúsculo, e, por fim, os que efetivamente realizaram uma formação laboriosa e desenvolveram pesquisas originais em suas teses de doutorado, esses são os que menos contam do ponto de vista das nossas arraigadas valorações sociais e políticas. Pelo contrário, há prevenção contra eles: são vistos como presunçosos.

O Congresso Nacional ostenta uma maioria de doutores por tradição, a maior parte de advogados. Por trás deles, com mais poder de mando e imposição de obediência, estão os doutores deitados em berço esplêndido, que não têm mandato político, nem vão perder tempo em nhém-nhém-nhém parlamentar, mas bancam as campanhas e obtêm a satisfação de suas demandas e de seus interesses dentro do Congresso. Eles são os verdadeiros representados na política brasileira. Podemos dizer que o Congresso Nacional representa não os interesses da população brasileira em geral, mas os interesses específicos dos doutores de berço. As instituições estatais, os ministérios, as agências reguladoras, as autarquias como o Cade (lembremos da última do dr. Perdigão com a drª Sadia) etc., todos representam primordialmente esse grupo restrito. E ai nós voltamos à questão que tomamos como título: “Doutor é quem faz doutorado?” E a resposta agora é negativa: “Não”. Doutor de verdade é quem não tem doutorado. Até o contrário, quanto menos doutorado tiver mais doutorabilidade, mais respeito, está apto a angariar.”

Se o doutor de berço de ouro não existisse, mas apenas o doutor acadêmico, o título de doutor no Brasil seria levado a sério. Mas se, para ser doutor de verdade, o mais importante é ter tido berço, então o diploma carimbado e registrado no MEC não será lá muito respeitado. Nem pelo próprio MEC. O verdadeiro doutor não tem diploma. Ao contrário, ele zomba dos diplomas e dos diplomados. A base de sua posição não é  o saber, mas o privilégio.

Vejamos a questão da educação e os privilégios concedidos aos donos das faculdades privadas através de um caso recente.

Faz pouco tempo um amigo me confidenciou que ele, que dá aulas numa dessas macabras ratoeiras, saiu mais cedo. Para ser exato, rodou a catraca um minuto mais cedo. Sim, existe uma catraca controlando eletronicamente quem entra e quem sai. Foi surpreendido no dia seguinte com uma convocação do controlador-mor, espécie de capitão do mato da assim batizada “instituição de ensino superior”. Surpreso, dirigiu-se ao antro. O pânico chegou quando sentiu a recepção fria, siberiana, e notou a carranca crispada do verdugo balançava numa mão, como se estivesse diante de um meliante, uma foto do docente como prova do crime. Era a foto dele, o meu amigo, de costas, no momento em que rodava a catraca. Um minuto antes do tempo regulamentar. Na base da foto estava impressa, em fileira longa de números digitais, o momento exato da sua saída. Foi devidamente repreendido. E ao murmurar alguma coisa sobre “direitos” e mencionar algo parecido com “imagem”, foi confrontado com a seguinte frase: “Você prefere o olho da câmera ou o olho da rua?”. Ora, esse nosso amigo, humilhado e ofendido, é um portador do título de doutor carimbado pelo MEC. Já o algoz que estava diante dele, com a foto entre as garras, é um sujeito que se orgulha de ter o primário incompleto. Mas todos os chamam de “doutor” e tiram o chapéu com deferência ao vê-lo passar. Estranho, não?

O Ministério Público Federal terá que se ocupar desse assunto. A vida acadêmica é essencialmente um exercício da liberdade, não importa se a instituição é pública ou privada. No ensino universitário, o docente não é mera máquina de repetir conhecimentos prontos. Ele deve ser um criador de conhecimentos novos. Por isso a exigência da pesquisa. Para ser criativo, o docente necessita de liberdade. Afora isso, essa parafernália de ponto eletrônico, terrorismo das câmeras, fotografias, etc, afronta evidentemente a dignidade pessoal. Isso tem que ser combatido.

Cronômetro, catraca, ponto eletrônico, vídeo, foto, reprimenda, ameaça e algoz. Tudo isso para que possam exercer a liberdade de ensinar prescrita na “Constituição cidadã” brasileira? Uma ordem rígida e ditatorial, semi-escravista, é imposta ao corpo do docente.  Já para donos das faculdades privadas, tudo é bem diferente: o MEC transforma o estado em casa assistencial da mãe Joana, dando direito de fazer e desfazer, de carnavalizar a lei e aplicar todo tipo de esquema para aumentar a lucratividade. Durante muitos anos vimos aquelas avaliações de instituições particulares, que não mostravam a menor condição de funcionar. Eram fechadas? Eram punidas? Não. Ao contrário. Recebiam polpuda ajuda financeira para implementar melhorias. O que implementava mais ainda os próprios lucros que auferiam. Ensino ruim significa, na outra ponta, lucros exorbitantes.

Ora, se um docente não pode sair um minuto mais cedo, que dizer de um afastamento de dois anos para mestrado? E de quatro para doutorado? A responsabilidade pelo aperfeiçoamento de seus docentes seria condição elementar de um ensino superior de verdade, e não de araque, nas instituições privadas. Mas é impensável. Aliás, as coisas se flexibilizam sempre mais, tornando mais limitada a já insignificante percentagem de doutores que um curso superior precisa ter em seu corpo docente. São esses fatos, no fundo, que desvendam o segredo da força de aderência do ministro Haddad à frente do Ministério da Educação. Crises e asneiras não faltaram. Mas o ministro permaneceu firme no cargo. O inderrubável ministro conta com a adoração dos donos de faculdades particulares, bem representados e dominantes dentro do Conselho Nacional de Educação. E, não poderia ser diferente, dado o “ótimo diálogo” que o setor mantém com o ministro.  Seria preciso ver como bolsas da Capes, do CNPq, vão regar as flores dos jardins dessas faculdades privadas. Em que quantidade e com que retorno real.

Para uma educação superior de qualidade é preciso, antes de tudo, punir as faculdades privadas que desrespeitam as normas atuais (muitíssimo negligentes) e, em seguida, criar uma nova normatização, radicalmente distinta da atual.  Imposssível? Não. Mais que isso. Completamente inviável. Fazer cumprir a legislação atual, o Ministério Público pode conseguir, mas não vai ser fácil. Já a possibilidade de uma revolução normativa, me parece inexequível. Quem manda na educação superior são as privadas. Quem queira imaginar o que é o Conselho Nacional de Educação lembre do seguinte: o filósofo José Arthur Giannotti, amigo íntimo de FHC, saiu de lá logo depois de entrar, em 1997, afirmando sobre a Câmara de Educação Superior, um dos órgãos do Conselho: “A câmara  se transformou numa reunião de lobbies, num fórum de partilha de interesses privados”. Na verdade, por obra de FHC e do seu partido, o que o nosso ingênuo filósofo fingiu ignorar, não apenas essa câmara, mas o estado brasileiro inteiro transformou-se “numa reunião de lobbies, num fórum de partilha de interesses privados”.

E isso nos convida a considerar um caso recente, relativamente raro de doutoridade. Ele se encontra no recente escândalo no Dnit envolvendo a triste figura do Doutor Fred. Esse doutor tem sido chamado de funcionário fantasma nos últimos dias. O que parece um erro, porque não era funcionário, em primeiro lugar, e em segundo porque comparecia todo dia, era diligente e aplicado. Até por demais meticuloso. O funcionário fantasma é um ausente. E é funcionário. O doutor Fred nem era ausente, nem funcionário. Na verdade, também não era Fred. Era Frederico. Certo é que era doutor:  o doutor Fred. Mas sua modalidade de doutoridade era distinta. O doutor Fred era poderoso, despachava em gabinete próprio, tinha gente à sua disposição, certamente motorista, secretária, e lá quantos agregados precisava no seu bureau. Porém, aconteceu algo que mudou a sua vida. Ele, que nunca esteve escondido, foi descoberto.

Instantaneamente, a realidade ontológica do Doutor Fred ruiu. Caiu das alturas, de onde planava em seu vôo livre em céu de brigadeiro, quando foi desinflado de toda a sua realidade num passe de mágica. Foi o que fez o diretor afastado do Dnit, ao afirmar: “Não vou dizer que é um pobre coitado. Não é funcionário de carreira, não tem poder de decisão nenhuma. Se pudesse comparar, diria que é um estafeta, um boy.”

Pois é. O Doutor Fred perdeu tudo. Mas, é importante observar, que tudo que ele perdeu ele não tinha: ele perdeu a condição de funcionário, coisa que ele não era mesmo; deixou de ser o homem das decisões, mas quem disse que ele decidia alguma coisa? Tudo indica que era mero despachante de Valdemar da Costa Neto.  Um intermediário. Ele, então, tendo sido despachado da condição de intermediador, perdeu também o seu título simbólico, de Doutor passou a “um estafeta, um boy”.  A sua posição anterior como intermediário de uma força maior — o Valdemar da Costa — concedia a ele as costas quentes. Mas, de súbito, suas costas esfriaram. Ai sua posição hierárquica se inverteu como num tombo: de doutor passou a boy. Ou seja, do lugar mais alto na burocracia civil, o doutor, foi posto na posição mais rasteira das repartições: a de boy.

O ex-doutor Fred ainda merece ser melhor definido. Se ele não era um fantasma, já que fantasmas são os funcionários ausente — e ele nem era funcionário nem ausente —, então qual era o ser metafísico, sobrenatural, do ex-doutor antes de perder sua doutoridade? Quando despachava, decidia, tomava decisões, falava ao telefone o dia inteiro e dava ordens e exigia providências? Na verdade, presumo que o Fred era um tipo especial de entidade transmundana, um pouco diferente do vulgar fantasma, que no Brasil tem pra dar e vender. O fantasma ostenta uma peculiaridade: arisco à luz, costuma se esquivar, e se dá as caras, é nas horas mortas, quando o pessoal da repartição já foi embora e ele entra para assinar o ponto. Não era o caso do doutor Fred, acintosamente presente. Por isso, me parece, Fred tem mais um perfil de “aparição” do que de “fantasma”. E a sua encarnação terminou em tragédia justamente por causa disso: porque apareceu demais.

Por falar nisso, é curioso notar que as denuncias no Dnit vêm levando ao afastamento dos suspeitos, funcionários, apaniguados e políticos. Contudo, esses indigitados estão todos do lado do estado, seja como funcionário, políticos ou aparições. Mas a corrupção tem outro lado, a dos que corrompem. Desse lado, tirando as mirradas empresas (de filhos, mulheres e irmãos) que parecem peneirar as sobras, as migalhas dos milhões que caem da farra do banquete principal, nada mais vemos. Coisa grande, empresa de grande porte, nome muito conhecido na praça, nada disso aparece.

Minha hipótese é de que não aparecem porque, por trás dessas empresas, estão os doutores de berço, que conseguem manter o véu espesso da obscuridade. O Estado brasileiro também não foi feito para persegui-los, trazê-los para a luz do dia e, com isso, desfazer o seu encanto, e o seu poder. Ao contrário, o Estado é o maior cúmplice da obscuridade. No dia que o Estado mudar, esses doutores serão remidos das trevas e, como o recém desencarnado doutor Fred, vão cair das alturas e arrastar suas correntes pelos longos corredores das penitenciárias. Mas, por hora, nada parece mais distante.

*É doutor em Filosofia, autor dos livros Lógica do disparate, Método e delírio e Lógica dos fantasmas. Foi duas vezes premiado pelo Ministério da Cultura por seus ensaios sobre o pensamento social e cultura no Brasil. É coordenador da revista eletrônica, Revista Humanas , órgão de divulgação científica da Cátedra Unesco de Multilinguismo Digital (Unicamp) e professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Ufes