Brasil vive sob a égide do absolutismo, diz Roberto Romano
O
Brasil vive, desde o começo da sua história, sob a égide do
absolutismo, dos golpes de Estado e da prática de favores. A afirmação
foi feita no início da tarde desta quinta-feira (3) pelo professor do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, Roberto
Romano, em resposta ao questionamento de uma das pessoas que
acompanharam a sua conferência abordando o tema Democracia e Luzes
contra a Razão do Estado. “Quando Dom João veio para o Brasil, trouxe em
seus navios a recusa da accountability [conceito que se refere à
prestação de contas]. Não por acaso, o primeiro fruto eficaz deste veto,
a Constituição Imperial de 1824, proclama a irresponsabilidade do chefe
de Estado e afasta a transparência e a plena soberania popular. Somos
um Estado que nasce contra as revoluções modernas, sob molde
absolutista”, disse. Roberto Romano participou do projeto Aulas
Magistrais, iniciativa da Pró-Reitoria de Graduação (PRG).
De acordo com o docente da Unicamp, no
Brasil ainda vigoram anomalias como a prerrogativa de foro para
políticos, magistrados e promotores de justiça, algo que, na opinião
dele, somente tem sentido em regimes de privilégio nos quais o povo é
regido por uma lei supostamente universal, modificada para quem integra o
poder. Em sua fala, Roberto Romano também defendeu a necessidade de a
Comissão da Verdade, mecanismo criado pelo governo federal para apurar
os abusos cometidos durante o período de exceção, abrir a via da
transparência e da responsabilização dos agentes públicos, deixando
patente que ninguém pode golpear a democracia, matar, torturar ou cassar
direitos dos oponentes. “Se agir assim, a Comissão da Verdade prestará
serviço à cidadania, permitindo diminuir o alto grau de absolutismo que
ainda nutre os que, no Estado, sobretudo hoje, imaginam poder usar os
recursos públicos como se fossem seus”.
No curso da sua conferência, Roberto
Romano destacou que o conceito Razão do Estado, que significa o uso da
força ou meio de exceção por parte poder, sob o argumento de se manter a
ordem social, nasceu no seio da Igreja, no século 16. Com o decorrer do
tempo, o termo adquire polissemia e passa a ser utilizado também pelos
governantes, notadamente para disciplinar os governados. Já as Luzes,
prosseguiu o professor do IFCH, surgem como uma visão crítica à Razão do
Estado. Estas têm como preceito a ideia do espalhamento dos saberes,
como forma de tirar as práticas absolutistas da escuridão.
O objetivo do projeto Aulas Magistrais é
divulgar aulas ministradas por docentes da Unicamp, voltadas para
alunos de graduação. Os temas abordados são de interesse geral da
comunidade acadêmica e da sociedade. Em dois anos já foram tratados,
entre outros, assuntos relacionados às áreas da matemática, física,
educação, química e meio ambiente. O evento é transmitido ao vivo por
meio da internet. Posteriormente, o conteúdo é colocado à disposição dos
interessados no sítio da PRG, neste endereço.
Fotos: Antonio Scarpinetti Edição das imagens: Everaldo Silva
Texto completo
Aula Magistral Unicamp (Pro Reitoria de Graduação) 03/05/2012.
Professor Roberto Romano da Silva / Departamento de Filosofia/ IFCH.
Minha geração recebeu o impacto da ditadura Vargas, incluindo a morte do
ex-ditador, presidente constitucional em 1954. Apenas dez anos
passados, o Brasil sofre novo golpe após várias façanhas golpistas.
Lembro o veto à posse de Juscelino Kubitschek e João Goulart, o
contra-golpe do Marechal Lott, o levante de militares em Aragarças, a
muito provável tentativa de golpe por Jânio Quadros, o golpe militar e
civil contra a posse de João Goulart que levou ao parlamentarismo.
Finalmente, o golpe civil e militar que se apresentou de 1964.
Golpes e razão de estado são faces de um só bloco prático e teórico. Os
primeiros ocorrem desde a origem do mundo moderno. Suas formas variam,
mas os frutos favorecem poderes hegemônicos. Estudo a razão de estado
desde 1975, quando fazia o doutoramento na Escola de Altos Estudos, em
Paris. No livro que resultou daquela pesquisa, Brasil Igreja contra
Estado, o núcleo é o regime civil e militar produzido por sucessivos
golpes nos embates com a Igreja Católica e a vida brasileira. Os atos
institucionais, do AI/1 ao AI/5, foram golpes de Estado sob a égide de
setores que incluem as finanças, a indústria, corporações jurídicas,
oligarquias regionais e, last but not least, a CNBB que apoiou a
ditadura também nos passos seguintes, inclusive o AI/5. A Marcha da
Família com Deus pela liberdade, a Cruzada do Rosário e outros movimento
de massa somados aos documentos oficiais da CNBB, deram suporte aos
golpistas. (1) Analisei, no livro, a soberania sobre corpos e mentes que
define o Estado moderno nos seus três monopólios essenciais, o da norma
jurídica, da força física, dos impostos. Os trabalhos que publiquei
buscam entender as forças que justificam o Estado em suas diversas
faces. Assim foi com Conservadorismo Romântico, onde estudo as bases da
lógica totalitária, e outros.
A Igreja, afastada do poder secular após sérias controvérsias, não abre
mão da "soberania espiritual" tematizada pelo cardeal e Santo Roberto
Bellarmino na era do Concilio de Trento (1545-1463). Bellarmino fala em
"soberania indireta" do poder eclesiástico, mas é rebatido por filósofos
como Hobbes e outros. No mesmo tempo, uma vertente teológica e política
próxima a Bellarmino publica, em réplica às doutrinas laicas sobre o
Estado, sobretudo contra Maquiavel, o primeiro livro que assume o título
Razão de Estado (1589). (2) A razão de Estado, portanto, nasce na
Igreja para depois se voltar contra ela, em defesa do poder laico.
RAISON D´ÉTAT
O termo nasce no Renascimento e significa o uso da força ou meio de
exceção a serviço do poder que se busca conservar para garantir a ordem
social. De Giovanni Botero a Scipione Chiaramonti (1635), ele adquire
polissemia, mantendo a idéia de conservação do poder e disciplina contra
os governados. O máximo prestígio da fórmula encontra-se no poder
absoluto, posto acima e fora das instituições comuns da sociedade e dos
procedimentos jurídicos habituais no direito romano modificado pela
Igreja ou no direito natural antigo e moderno. Como a expressão indica, o
governo absoluto não possui amarras que o prendam aos ritos religiosos e
jurídicos anteriores ao seu surgimento.
No Del reggimento di Firenze Francesco Guicciardini, por volta de 1523,
fala numa “ragione degli Stati”, designando a razão “pouco cristã e
pouco humana” da política. Impossível governar com preceitos
evangélicos, o Sermão da Montanha. Outro escritor, Della Casa, distingue
a ragion di Stato da razão civil e argumenta que não podem existir duas
práticas opostas, o útil distinto do honesto, a moral separada da
política. Duas razões diversas são alegadas, mas a primeira, a razão de
Estado “opera com a fraude e a violência”. Naqueles autores, a razão de
Estado suscita horror diante da soberania laica.
A Razão de Estado, após o século 16, fortalece o tema da conservação
política. O primeiro autor relevante, como afirmei, é Giovanni Botero. O
livro Della Ragione di Stato (1589), foi a primeira forma teórica do
projeto de conservação estatal. "Estado é um domínio firme sobre os
povos; e Razão de Estado é notícia dos meios aptos a fundar, conservar, e
ampliar aquele dominio. Embora absolutamente falando a razão de Estado
ligue-se às três partes mencionadas, parece no entanto, que abrace mais
estreitamente a conservação do que as outras”. A razão de Estado surge
como conservadora em sentido estrito. Cito a mim mesmo em artigo sobre o
conservadorismo : "O que é ‘conservador’? O medo de que a população
estrague a festa do poder, destruindo a segurança, a propriedade, os
vínculos da tradição (…) Trata-se de conservar o social e o Estado (…)
sempre no horizonte do pavor e do medo, da guerra, do soldado, da
polícia, do carrasco. Por isso a imagem do dilaceramento, junto com o
medo da subversão da ordem, é onipresente nas falas conservadoras. Nelas
acentua-se a harmonia como fim político, não importa o preço” (3).
Ragion di Stato, diz Botero, é a busca dos meios para conservar as
potências adquiridas, “as manter firmemente, quando cresceram,
sustentá-las de tal modo que não se degradem ”. A prudência política é o
centro da reflexão em Botero. Trata-se da capacidade de usar o
conhecimento dos fatos e dos saberes diversos para fins políticos. O
governo deve contar com notícias aprofundadas das coisas e dos atos. Com
tais notícias acumuladas, são estabelecidos códigos de comportamento. O
governante identifica problemas que exigem a sua intervenção para fins
técnicos e para disciplinar os governados. Com as noticias e os
comportamentos, o governo ganha tempo na ação, garante o controle do
coletivo. O domínio do tempo regula-se segundo a prudência na fórmula de
Botero : “non fare novità”. O governo deve reduzir as situações de
excepcionalidade, definir padrões habituais de intervenção. As lições de
Botero foram praticadas pelo poder absoluto dos soberanos que mantinham
o vínculo entre a religião e o governo.
O modelo perfeito de soberano teológico político foi ideado por James I,
para quem o governante não deve satisfações aos parlamentos, juízes,
súditos. “Um bom rei", escreve James, "enquadra todas as suas ações
segundo a lei; mas prende-se a ela só pela boa vontade e para dar
exemplo aos súditos. Ele é o senhor sobre todas as pessoas, tem poder de
vida e morte. Embora um principe justo não tire a vida de nenhum súdito
sem uma lei clara, a mesma lei com a qual ele tira a vida é feita por
ele mesmo ou por seus predecessores”. Pai do povo, o rei seria o
professor universal, pois os súditos são fracos e ignorantes. Ele
independe do judiciário: “A ruindade de um rei nunca pode fazê-lo ser
julgado pelos juízes que ele próprio ordenou”. James tem veleidades
religiosas. (4)
Não é o que ocorre com outros soberanos e teóricos do poder absoluto,
quando se armam com a razão de Estado. Esta última neutraliza os
conceitos teológico-politicos ao assumir o interesse estatal. Texto
nuclear tem como autor o Duque de Rohan, Do interesse dos príncipes et
dos Estados da Cristandade, que analisa como frio estrategista militar e
diplomático as riquezas, a forças geopolíticas dos Estados, não pondo a
religião como algo mais estratégico do que os demais itens necessários à
conservação do poder. (5) E surgem juristas e mesmo teólogos que, em
resposta ao desafios de Maquiavel, definem o uso legítimo dos poderes
para manter e expandir os bens públicos.
A razão de Estado visa controlar a religião, usando-a como instrumento
de governo, e incorpora o segredo para garantir o gabinete do rei, lugar
onde não são admitidos os homens comuns. "Mesmo os ateus", diz Jean
Bodin, teórico do absolutismo, "concordam : não existe coisa que mais
conserve os Estados e Repúblicas do que a religião, principal fundamento
da potência monárquica, da execução das leis, da obediência dos
suditos". (Seis Livros da República, IV, 7).
O governante acumula segredos e deseja expor os súditos à luz perene. E
se estabelece a heterogeneidade entre governados e dirigentes. Nos
tempos modernos, diz um teórico, “a verdade do Estado é mentira para o
súdito. Não existe espaço político homogêneo da verdade; o adágio é
invertido: não mais fiat veritas et pereat mundus, mas fiat mundus et
pereat veritas. As artes de governar seguem e ampliam um movimento
político profundo, o da ruptura radical (…) que separa o soberano dos
governados. O lugar do segredo como instituição política só é
inteligível no horizonte desenhado por esta ruptura (…) à medida que se
constitui o poder moderno. Segredo encontra sua origem no verbo latino
secernere, que significa separar, apartar”. (Jean-Pierre
Chrétien-Goni).
Entre as técnicas de governo ocorre o uso do tempo oportuno, lição
maquiavélica inspirada no Kayrós grego. Acelerar o tempo em proveito do
governo é regra nos programas que integram a razão de Estado. O poder
usa a dissimulação para enganar os dirigidos e os concorrentes
internacionais, e ganha tempo ao acelerar ou retardar atos, ficando
menos sujeito às pressões cronológicas, naturais, econômicas e
políticas, bélicas e religiosas. Ele acede, assim, à força de prever (a
prudência) que assegura a iniciativa em conflitos ou dificuldades,
permitindo conservar o poder.
A razão de Estado busca, na ordem social e política, os setores que mais
ganham ou perdem com a conservação do poder. Aos primeiros, ela coopta e
aos segundos, afasta. Assim, se define o consenso e a legitimação. O
governante, afirma Botero, diminui o poder dos muito fortes e promove os
“mezani” que possuem interesses médianos, nem muito ricos ou pobres. Os
muito pobres são “perigosos à paz pública” pois não têm interesse algum
para salvar : “deve o rei estar seguro deles, o que fará os expulsando
do seu Estado (...) ou os obrigando a fazer algo, seja na agricultura,
nas artes, ou a algum outro exercício, com o emulemento que os
mantenha". Afinal, arremata, “razão de Estado é pouco além de razão de
interesse". O governo da razão de Estado organiza a ordem na qual são
reconhecidos os interesses e os artifícios que permitem a obediência
civil.
Ocorre, portanto, na razão de Estado, uma imposição técnica do mando
político. Se deseja manter-se, o governante deve enfrentar o desafio
maquiavélico: o poder está sempre sob ameaça e seu tempo é breve. Justo
por isso, a necessária vigilância e o segredo entram na raison d´état.
Quando não se confia no povo ou nos Estados concorrentes é preciso deles
esconder e deles arrancar o máximo. Quanto mais imediato o perigo, mais
o aparelho estatal engendra novas técnicas de escuta, controle e
ocultação.
Com a democracia produzida nas três grandes revoluções modernas —
inglêsa do século 17, a norte-americana e a francêsa no século 18— o
segredo foi atenuado pela accountability e transparência. Na forma
anterior à democracia o soberano não deve satisfações aos parlamentos,
aos juízes, aos governados. Na fala ao Parlamento de 1616, James
proclama que “os reis são justamente chamados deuses; pois exercem um
modo de semelhança do Divino poder sobre a terra. (...) Deus tem poder
de criar ou destruir, fazer ou desfazer ao seu arbitrio, dar vida ou
enviar a morte, a todos julgar e a ninguém prestar contas (to be
accountable). O mesmo poder possuem os reis. Eles fazem e desfazem seus
súditos; têm poder de erguer e abaixar; de vida e morte; julgar acima de
todos os súditos em todos os casos e só deve prestar contas a Deus (yet
accountable to none but God)”.
Inaceitáveis para um absolutista a soberania do povo e a noção de que os
dirigentes devem prestar contas, sem manter segredo, à massa não
qualificada. Os príncipes aprendiam na literatura grega e romana a plena
desconfiança no povo. Este, para os latinos, era apenas o populo
exturbato ex profugo, o improbante populo, o vulgus credulum, vulgus
imprudens vel impudens, vulgus stolidum etc. Gabriel Naudé nas
Considerações Políticas sobre os golpes de Estado (1639) (6) diz ser
preciso cautela contra o povo, animal de muitas cabeças “vagabundo,
errante, louco, embriagado, sem conduta, sem espírito nem julgamento….a
turba e laia popular joguete dos agitadores: oradores, pregadores,
falsos profetas, impostores, políticos astutos, sediciosos, rebeldes,
despeitados, supersticiosos”.
Gradativamente surgem outras percepções do povo como em Althusius. No
final da Idade Média a doutrina do Estado definira que o fundamento do
governo residia na submissão voluntária e contratual das comunidades
governadas. Para Althusius, ao contrário, o summus magistratus é o povo.
Na Inglaterra, os conflitos da vida capitalista triunfante após a
Reforma de Henrique VIII, ergueram facções, dos Levellers aos Diggers,
mesclando religião e imperativos democráticos. Nasce a idéia da
accountability: o rei não presta contas apenas ao ser divino, mas ao
povo: Vox populi, vox dei. John Milton expressa os dois princípios: “…
Se o rei ou magistrado são infiéis aos seus compromissos o povo é
liberto de sua palavra”, frases que definem o principio da nova
legitimidade política. O summus magistratus popular exige
responsabilidade dos que agem em seu nome. As teses democráticas
inglêsas repercutem pela Europa inteira e integram o corpus doutrinário
que molda novas formas de Estado como a própria Inglaterra, a França, os
EUA. A democracia integra o subsolo das Luzes, contra o mando absoluto
seja ele religioso ou laico.
Na mais relevante obra sobre a razão de Estado do seculo 20, F. Meinecke
diz que aquelas doutrinas e práticas estão entre os “principais fatores
que abriram a via para o movimento das Luzes”. Mas adianta : “as
próprias Luzes combateram mais tarde apaixonadamente a razão de Estado
devido ao seu individualismo, fruto do direito natural ou de seus
principios humanitários”. Na verdade, não vem do individualismo
iluminista a sua critica à doutrina, um esteio do poder absoluto na
Europa. Ela vem dos movimentos contra o arbítrio real, sobretudo na
Inglaterra.(7)
Calaram fundo nos iluministas os princípios democráticos inglêses.
Enuncia Diderot nas Observações sobre o Projeto de Constituição de
Catarina 2 : “Não existe verdadeiro soberano a não ser a nação; não pode
existir verdadeiro legislador, a não ser o povo; é raro que o povo se
submeta sinceramente a leis que lhes são impostas; ele as amará, as
respeitará, obedecerá, as defenderá como sua obra própria se é delas o
autor (…) A primeira linha de um código bem feito deve ligar o soberano;
ele deve começar assim : `Nós, o povo (e lembremos que este será o
início da Constituição norte-americana : We the People…) e nós, soberano
desse povo, juramos conjuntamente essas leis pelas quais seremos
igualmente julgados; e se ocorrer a nós, soberano, a intenção de
mudá-las ou infringi-las, como inimigo de nosso povo, é justo que ele
seja o nosso, que ele seja desligado do juramento de fidelidade, que ele
nos processe, nos deponha e mesmo nos condene à morte se o caso exige;
esta é a primeira lei de nosso código”.
As Luzes têm sua optica política exposta na Enciclopédia dirigida por
Diderot. Nela, em verbetes do coordenador ou auxiliares, existe uma
séria crítica à razão de Estado.Se consultamos o verbete “Raison d’État”
( redigido por Jaucourt mas revisado por Diderot), notamos que a
própria exposição daquela idéia já é crítica. Cito um trecho : "Alguns
autores acreditaram que existem ocasiões nas quais os soberanos são
autorizados a fugir das leis severas da probidade, e que o bem do Estado
lhes permitiria agir de modo injusto diante de outros estados, que a
vantagem do povo justificaria a irregularidade em suas ações". Assim,
no intróito do verbete o condicional mostra a suspeita na doutrina.
Diderot e seus pares tiveram relações difíceis, para não dizer
conflituosas, com Frederico o Grande da Prússia e Catarina II, os
supostos “monarcas esclarecidos”, velhas raposas da razão de Estado.
As injustiças, continua o verbete, "autorizadas pela raison d´État,
consistem em invadir o território de um vizinho cujas disposições são
suspeitas, apossar-se de sua pessoa, privá-la das vantagens a que tem
direito sem motivo confessado ou sem declaração de guerra". A descrição
dos atos subsumidos sob a razão de Estado, das Luzes aos nossos dias, é
constante. A retórica empregada na justificação da doutrina é a mesma.
Adianta o texto: “Os que sustentam uma idéia tão estranha (grifo meu), a
fundamentam no princípio de que os soberanos devem procurar tudo o que
pode fazer feliz e tranqüilos os povos que lhes são submetidos, e têm o
direito de usar todos os meios que levam ao fim salutar. ” Temos aí
resumida a essência do cálculo estatal. Segue o remédio para o problema:
"por mais especioso que seja o motivo [a felicidade e a segurança
tranqüila dos povos], importa para a felicidade do mundo encerrá-lo en
justas barreiras: é certo que um soberano deve procurar o que conforta a
sociedade por ele governada; mas não à custa dos outros povos. As
nações e os particulares têm direitos recíprocos. Sem isto, todos os
soberanos, com os mesmos direitos, estariam num estado de desconfiança e
de guerra contínua ".
Conclusão do verbete: "os representantes dos povos, como os indivíduos
na sociedade, não podem isentar a si mesmos das leis da honra e da
probidade. Seria abrir as portas para a desordem universal instituir a
máxima que destruiria os vínculos entre as nações, e que exporia as mais
fracas às opressões das mais fortes. Tais injustiças não podem ser
permitidas, qualquer o nome que se use para disfarçá-las”.
Na definição do ser estatal o autor acusa os defensores da razão de
Estado para quem astúcia e força, usadas sem regra nem lei pelos
soberanos, justificam-se pela segurança e felicidade dos súditos. Mas o
ser político, pensa o enciclopedista, não é feito só tendo em vista
aqueles pontos: "Estado", escreve, “designa uma sociedade de homens
vivendo juntos sob um governo qualquer, felizes ou infelizes”. Se o povo
é infeliz em suas terras, não é pela conquista ou invasão de outros que
ele alcança a beatitude.” Seguidas as Luzes, muitos imperialismos
seriam evitados, como o assumido pelos nazista à busca de Lebensraum. A
Revolução francêsa tenta acabar com o segredo, as desigualdades entre
governantes e dirigidos, a razão de Estado. E segue a soberania popular,
a responsabilização dos que operam a máquina política, a transparência.
Passada a era das revoluções, para usar o termo de Eric Hobsbawn, o
poder estatal apresenta agudos problemas. A maioria dos Estados enfrenta
uma crise inédita de autoridade e disciplina sobre o mercado, as
empresas multinacionais, etc. Mas afirma cada vez mais o controle
policial e, mesmo, militar, sobre os cidadãos que recusam ser espoliados
de suas poupanças, empregos, vida em prol de instituições financeiras
golpistas. Dessa crise, a Europa da Grécia é apenas um sinal de alerta.
Na dialética contraditória ocorrida no âmbito democrático —os demagogos
prometem plena transparência ao povo, mas precisam assumir o segredo
estatal, são eleitos pelo voto secreto e, nos palácios, usam o segredo
para domar as massas que os sufragaram— o pêndulo vai da licença às
tiranias. A resposta do poder ao segredo do voto foi o recrudescimento e
a manipulação inaudita do segredo de Estado.
Após a Segunda Guerra, a Guerra Fria, o Macarthismo as formas
autoritárias, o segredo aumenta sua abrangência. Se os países
socialistas, supostamente repúblicas populares, quebram a base da
accountability e da fé pública em proveito dos governos, algo similar
ocorre hoje na Europa e nos EUA. Nas formas imperiais dirigidas pela
Otan, nas políticas que restringem as liberdades públicas nos EUA, como
na Lei Patriótica, temos um avanço da razão de Estado. Consideremos a
lição de Norberto Bobbio: “O governo democrático desenvolve sua
atividade em público, sob os olhos de todos. E deve desenvolver a sua
própria atividade sob os olhos de todos porque todos os cidadãos devem
formar uma opinião livre sobre as decisões tomadas em seu nome. De outro
modo, qual a razão os levaria periodicamente à urnas e em quais bases
poderiam expressar o seu voto de consentimento ou recusa? (…) o poder
oculto não transforma a democracia, a perverte. Não a golpeia com maior
ou menor gravidade em um de seus orgãos essenciais, mas a assassina”.
A democracia surge com a accountability a ser cobrada dos governos. A
radicalidade dos democratas inglêses rendeu frutos na Europa e na
América do Norte. Os seus postulados sustentam a Declaração Universal
dos Direitos Humanos. A recusa, durante a Guerra Fria, dos elementos
jurídicos e políticos sobre a accountability levam os governos à quebra
de padrões democráticos. Isto redunda em prejuízo dos povos em terras
hegemônicas e calamidades para os dominados, do Vietnã ao Chile e dele
ao Irã e Iraque. O segredo permite casos como o Irã contras, a ajuda aos
Talibãs, cuja ascensão ao poder é entendida como vitória sobre a URSS. O
segredo permite que nas duas guerras do Iraque informações vitais sejam
negadas ao público. A administração G. W. Bush conduz o segredo ao
máximo possível, incluindo-se o engano usado deliberadamente, como no
caso das armas de destruição em massa. O segredo embaralha interesses de
grupos privados e assuntos de governo, como nas licitações para a
espoliação do Iraque ao redor do petróleo. O governo norte-americano de
hoje, mesmo sob os democratas de Barack Obama, emprega meios secretos
para atingir alvos internos e internacionais, não raro retrocedendo na
política doméstica quando se trata do mesmo segredo. Em abril de 1994
surge a Public Law (número 103-236) estadunidense criando certa Comissão
para reduzir o segredo governamental, tendo a frente Daniel Patrick
Moyniham, do Partido Democratico, antigo membro dos gabinetes Kennedy,
Johnson, Nixon e Ford. A comissão publica um relatório (3/05/1997) cujas
palavras iniciais proclamam: "É tempo de um novo caminho para pensar o
segredo" Depois, o segredo retoma a iniciativa.
A tensa passagem da razão de Estado ao governo público define o destino
da democracia. Assistimos, nos últimos tempos, a derrocada quase
absoluta de governos diante de forças sacralizadas como o “mercado”. Em
nome da “confiança” daquele último, programas expostos em longos anos
aos cidadãos seguem para o vazio. Com uso do segredo “planos” econômicos
são impostos, lesam os contribuintes em nome de interesses alheios aos
seus países. Os referidos planos favorecem alvos financeiros
hegemônicos, sobretudo os dos grandes bancos, impunes e repetitivos na
arte de se apropriar de recursos públicos, como ocorreu em 2008. Hoje,
eles geram a bancarrota povos inteiros. Não se deve esquecer que há,
naquelas ações criminosas, além das técnicas de propaganda e de engano, a
força da razão de Estado e do segredo. (8)
O segredo é essencial para se refletir sobre a forma democrática.
Governos autoritários exasperam a prática de esconder os pontos maiores
das políticas no setor público. Entramos no paradoxo: o público é
definido fora do público. A opacidade estatal atinge níveis inéditos. O
aumento do segredo em Estados hegemônicos diminui, ipso facto, a
possível força dos dependentes ou não hegemônicos.
Sendo fato social, o segredo se manifesta em todos os coletivos humanos,
das igrejas às seitas, dos Estados aos partidos, dos advogados aos
juízes, dos quartéis às guerrilhas, das corporações aos pequenos
vendedores de rua, da imprensa à formas de censura, dos laboratórios e
bibliotecas universitários à fábricas, dos bancos às obras de caridade.
Se descermos mais fundo, da sociologia à ordem antropológica, podemos
dizer que o segredo é o lado oposto e necessário da linguagem
comunicacional. A prudência define a passagem de uma prática ou
experiência do segredo, antropológica e éticamente correta, para uma
outra, em que o poder abusivo se manifesta. O segredo integra a vida
como uma realidade não visivel.
A imprensa atenua o segredo de Estado e os demais sigilos (da vida
privada à religiosa, sem deixar de lado a economia). Ela, no entanto,
insere-se num complexo de interesses que a tornam constantemente atriz,
cúmplice e vítima dos poderes naquelas várias esferas. Todos aqueles
setores percebem na imprensa uma aliada, quando não instrumento, se o
alvo é propagar os seus intentos, procurando identificá-los ao
“interesse geral”. Ela é bem vinda naquela cirscunstância. Empresas e
indústrias, bancos e cúpulas eclesiásticas, gabinetes políticos ou
militares, partidos e seitas, todos cortejam a midia na busca de
popularizar a sua “mensagem”, obter lucros e favores de governos,
ameaçar concorrentes. E todos a criticam acerbamente quando não
conseguem efetivar, por seu intermédio, aqueles fins.
Na razão de Estado existem pontos essenciais que enumero a seguir:
1) conservar o poder soberano contra comoções da sociedade civil e
ataques de outros estados. A polícia e os exércitos modernos têm vínculo
direto com o poder secular e sua razão. No caso inglês e francês, mas
também no alemão, italiano, holandes, e outros, as divisões religiosas,
de classe, econômicas e políticas ameaçavam inviabilizar o mando
estatal, com um retorno à pulverização jurídica imperante na idade média
do feudalismo.
2) instaurar uma divisão no corpo político e jurídico, permitindo aos
que operam a máquina estatal um controle jurídico, político, econômico,
bélico, policial sobre as sociedades submetidas à soberania. Roberto
Romano : Revista de Economia Mackenzie. Visto o desprezo dos teóricos da
razão de Estado pela massa do povo, eles se voltaram para a formação de
elites intelectuais e dirigentes cuja tarefa seria conservar o poder
contra a turba, o vulgo. A razão de estado, assim, nasce e cresce como
essencialmente contrária à soberania popular.
3) instrumentalizar técnicas do segredo, da dissimulação, da
irresponsabilidade do soberano e absolutismo do governo. O poder se
esconde e esconde suas iniciativas dos olhos e ouvidos cidadãos e das
forças internacionais. Ao mesmo tempo, ele desvela tendencialmente os
segredos da cidadania e dos soberanos inimigos ou concorrente. Polícia e
espionagem são instrumentos essenciais da razão de estado.
4) o poder estatal não apenas esconde suas iniciativas. Ele parte para a
conquista da opinião pública desde o século 17, com a propaganda que
aproveita os novos meios de influência como os jornais, os libelos, etc.
para afirmar o bem fundado das políticas conduzidas pelo governo e para
pulverizar o mais possível as oposições internos ao governo e as
propagandas de outras soberanias. (9)
5) ampliar as prerrogativas do governante, permitindo uma leitura e
interpretação das leis favoráveis às suas decisões políticas: segundo
estudiosos da razão de Estado nossos contemporâneos, Christian Lazzeri e
Dominique Reynié, "O Estado é jogador que não aceita perder, e
modifica as regras do jogo. O escândalo que encobre a razão de Estado
trai nosso consaço como governados e nosso ceticismo diante das leis
constitucionais".
6) no mesmo passo em que recolhe os segredos dos dirigidos e dos países
concorrentes ou inimigos, a razão de estado os organiza em saberes,
usando também profissionais nos mais diversos planos do conhecimento. A
coleta de informações é dirigida, com auxílio estatístico, para a
economia (sobretudo os bens dos governados e o conhecimento das
potencialidades do solo, dos rios, do mar, as atividades fabrís, as
corporações, os bens dos nobres e dos eclesiásticos, etc), para os
costumes (as técnicas, produzidas por intelectuais da Igreja, como São
Carlos Borromeu com o Livro do Estado das Alma) (10) a guerra, a
diplomacia, etc. São instituidos escritórios que selecionam e guardam
documentos, dados, etc. Ao mesmo tempo, sob a égide de Gabriel Naudé, um
dos principais autores da razão de Estado na Europa, são aprimoradas
bibliotecas e instaurados arquivos para fornecer aos governantes o maior
número e o mais exato possível no campo dos saberes, tendo em vista o
uso político. (11)
7) para dominar as atividades sociais e políticas, a razão de estado
concentra no ápice do poder as prerrogativas antes usufruídas pela
Igreja, pelos municípios (invenção romana que persistiu durante a idade
média e começou a declinar de fato com o poder absoluto da razão de
estado, perdendo autonomia). Todas as funções do Estado passam a ser
definidas pelo soberano, inclusive a justiça, apesar das resistências de
tribunais e juristas. Quem se ergue contra o poder sabe que ele usa a
lei com hermenêutica interessada. A razão de estado é bem traduzida para
o vernáculo com o dito "aos amigos, tudo, aos inimigos a lei".
8) No velha busca de saber quem é soberano, a Lei ou o poderoso, a
resposta da razão de Estado é clara: o segundo é fonte de legítima
interpretação a aplicação jurídica. Define-se a rapsódica, senão
contínua, quebra da lei quando se trata dos governantes. A técnica tem
nome : golpe de Estado. Este, por sua vez, não se restringe às ações de
exércitos que invadem palácios, fecham parlamentos e desobedecem a
justiça. Nem todo golpe se resume à quartelada. Pelo contrário, os
golpes de Estado melhor sucedidos são inapercebidos pela maioria,
consistem nas "leituras" enviezadas das Constituições em proveito de
interesses governamentais ou de mercado.
Na essência da razão de Estado temos a prática habitual dos golpes,
fruto direto da promoção elitista e hostilidade contra a democracia. Se o
povo sempre erra, os golpes impede que ele chegue ao poder e, caso ele
tenha escolhido dirigentes, estes últimos não corresponderiam aos mais
altos interesses do Estado. Quando ocorre o golpe do Termidor, que
marcou o fim da fase democrática na Revolução Francesa, Boissy d'Anglas
disse com todas as letras que só podem escolher e votar no Estado os
proprietários, ou seja, os "melhores e responsáveis". Daí para os golpes
de Napoleão e da Contra Revolução foi apenas um passo.
Golpes de Estado (12)
Sigamos a definição de golpe, unida à de razão de estado, por Gabriel
Naudé : o golpe, diz ele, surge de "ações ousadas e extraordinárias que
os príncipes são constrangidos a executar em assuntos difíceis e como
desesperados, contra o direito comum, sem respeitar mesmo nenhuma ordem
nem forma de justiça, prejudicando o interesse do particular tendo em
vista o bem do público". Golpe e razão de Estado suspendem o direito e a
justiça. Naudé louva o governo francês que fabricou o massacre da Noite
de São Bartolomeu. A guerra religiosa precisava ser detida, degolar
protestantes foi o modo de prevenir todos os religiosos que o Leviatã
estatal não mais toleraria mortes de particulares por particulares.
Decidir a morte entra na prerrogativa única do Estado.
O moderno poder político é movido por golpes canhestros ou eficazes.
Basta consultar a crônica da Europa, crônica da razão de estado, para
verificar que todos os modos legítimos de mando foram agredidos por
golpistas de várias tendências. Assim, se afirmou o poder de Luis 11,
Catarina de Medicis e Henrique 4, sem falar nos mestres golpistas por
excelência, Richelieu e Mazarino. O mesmo pode ser dito sobre
Robespierre, a família Napoleão, Petain e Laval também integram a
fieira do golpismo. Na Inglaterra, a ditadura de Cromwell, com seus
homens armados, fecha o Parlamento e afastara monarquistas e liberais
(Levellers) da Revolução. Em Portugal, um golpe determina a luta de
Pedro 4, o nosso Pedro Primeiro, contra seu irmão. O século 20 português
conhece golpes continuados. O fascismo italiano foi uma série de
golpes, o mesmo na Espanha. Na Alemanha e na Rússia do século 20,
regimes virulentos dominam o Estado à força de golpes.
Os pensadores modernos buscam distinguir a força física (ao dispor do
governante) e a legitimidade ostentada, não raro, sem fundamentos
sólidos. Daí a separação —ainda hoje polêmica— entre a moral dos homens
comuns e a moral dos dirigentes. Gabriel Naudé, a partir daquela
separação entre as duas formas da moralidade distingue duas justiças.
“Uma é natural, universal, nobre e filosófica”. A outra é “artificial,
particular, política, feita e destinada às necessidades dos governos e
dos Estados”. (13) Na condução do Estado a moral se inverte e desobedece
os parâmetros comuns. O governante hábil não se prende aos limites
legais e à tradição de legitimidade dos títulos, usos e costumes.
Da nova licença atribuída ao governante surge a noção moderna de golpe
de Estado. Segundo Naudé, naqueles golpes tudo é invertido em relação à
normalidade (do direito, da economia, dos valores). No golpe o efeito
precede a causa e o esperado não se produz. Cito o próprio escritor:
“nos golpes de Estado, vemos a tempestade cair antes dos trovões; as
matinas são ditas antes que o sino toque; a execução precede a sentença;
(…) um indivíduo recebe o golpe que imaginava dar, outro morre quando
pensava estar em segurança, um terceiro recebe o golpe que não esperava;
tudo ocorre à noite, no escuro e entre névoas e trevas”. Temos em tal
imagem tudo o que define as lutas das Luzes contra o absolutismo e a
razão de Estado. Os golpes espalham trevas e delas dependem para sua
eficácia. As Luzes buscam a transparência, a suspensão do segredo.
No Brasil, temos os golpes do Imperador ao fechar o parlamento; dos
regentes; dos militares que derrubam a monarquia; de Getúlio que instala
uma ditadura feroz; dos civis e militares erguidos contra a ordem
estabelecida em 1961 e 1964. Depois, o golpe dentro do golpe no AI-5, o
golpe de Abril, etc. É preciso não banalizar a noção de golpe, cujo fim é
impedir a força de adversários no Estado e nas sociedades. Eles buscam
impor formas de pensamento (a Doutrina de Segurança Nacional) e
suspendem os mecanismos jurídicos das anteriores formas de poder. Sem
delegação das urnas, os seus atores se legitimam invocando a urgência ou
a necessidade. Foi assim no AI-1 : "A revolução vitoriosa se investe no
exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular
ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do
Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder
Constituinte, se legitima por si mesma." O golpe pode, se necessário
segundo os seus atores, aposentar o voto, cassar mandatos, fechar
partidos.
Volto ao importante estudo de Gabriel Naudé, as Considerações Políticas
sobre os golpes de Estado (1640). O texto pode ser lido on line, na
Biblioteca Gallica. Naudé situa o golpe no campo da prudência e todas as
prudências dependem de uma só, ilustrada por Luis 11, o "rei aranha"
cuja máxima era "quem não sabe dissimular, não sabe governar". A regra
dos governos reside na desconfiança universal e na dissimulação que
consiste ou em omitir (pretender que nada foi visto pelos poderosos) ou
"na ação e na comissão, o ganho de alguma vantagem para atingir alvos
por meios encobertos". Omissões e comissões nutrem os poderosos e
fornecem "os diversos meios, razões e conselhos usados pelos príncipes
para manter sua autoridade e a situação do público" sem "parecer
transgredir o direito comum e causar suspeita de fraude e injustiça". O
rei absoluto precisava, além da intimidação geral, comprar apoios dos
nobres, dos eclesiásticos, etc. O modo conservador de governo depende
muito da venalidade, das alocações de cargos em troca de mais poder,
etc. Até hoje, no mundo inteiro que se imagina democrático, muitos
operadores do Estado vivem das omissões e comissões. É bom recordar que o
governo da razão absoluta do Estado foi dos mais corruptos, em termos
históricos.
Um golpista indicado por Naudé é Dionísio, tirano de Siracusa. Querendo
impedir as reuniões dos opositores agendadas para a noite, ele afrouxa
sem alarde as penas dos assaltantes... Rapidez, quebra de costumes e de
jurisprudência integram os golpes. Neles "vemos cair a tempestade sem
ter ouvido os trovões (...) as Matinas são entoadas antes do sino tocar,
a execução precede a sentença. Fulano recebe o golpe que pensava
aplicar, sicrano morre, imaginando estar seguro." Truque jurídico
golpista : "o processo é instruído após a execução". A nova ordem se
livra das "pequenas formalidades exigidas pela justiça". Naudé profetiza
os regimes sangrentos do século 20. No golpe o político precisa ser
visto "como o pai que cauteriza um membro do filho para salvar a sua
vida". Os golpes devem ser radicais como nos "cirurgiões competentes
que, ao abrir uma veia, tiram o sangue para limpar os corpos de seus
humores nocivos". Segundo Naudé não existe ação eficaz se os planos
golpistas são publicados. Jamais ocorreu golpe sem a purga dos "membros
apodrecidos" : o golpe é intolerante, ignora "as pequenas formalidades
da justiça".
Mas o golpe longe de sanar as guerras civis, as perpetua levando-as ao
plano internacional. Quem deseja o convívio político segue as "pequenas
formalidades" jurídicas. Sem elas, ninguém está seguro, mesmo os
golpistas, pois os regimes não são eternos e o golpista de hoje é a
vítima do golpe, amanhã. A democracia exige simultaneidade das
diferenças ideológicas, nela não existem inimigos, mas adversários que
merecem respeito e jamais ataques fratricidas. Qual o terreno fértil dos
golpes? A desconfiança, a dissimulação, os ódios espalhados pelos que
empestam e sufocam a vida política. Tais são os primeiros e últimos
obstáculos a serem vencidos.
Termino. Como disse, em meu livro Brasil, Igreja contra Estado, analiso
as relações tensas entre o catolicismo hierárquico e os dirigentes do
Estado produzido por vários golpes, os de origem remota (como o que
moldou o Estado Novo) e os movidos pela burguesia nacional e seus
militares. Uma figura que une a razão de Estado varguista e a de 1964 é
Francisco Campos. Sua mão ainda se apresenta nos Atos Institucionais, do
primeiro ao último. Qual razão ensandecida impulsiona as ditaduras que
moldaram o Brasil do século 20? A razão de Estado, aqui, teve alvos
propagandísticos ou reais, como o programa econômico e ideológico que,
para nossa felicidade, nos arrancaria do subdesenvolvimento: Brasil,
grande potência.
Os fins clássicos da razão de Estado foram defendidos clara ou
hipocritamente por juristas, militares, banqueiros, industriais, e mesmo
setores do clero brasileiro : a quebra da lei em favor dos governantes,
o segredo (mesmo Decreto secreto foi usado na ditadura), a fraude, a
vigilância policial, as torturas, o desaparecimento de opositores, a
censura à imprensa, o exílio, as cassações de mandatos e destituição de
juízes. Vivemos, as duas ditaduras sob o império da razão de Estado,
tendo o segredo como ética perversa, anti-democrática e assassina.
Hoje, a Constituição Federal de 1988 prevê remédios contra o golpe de
Estado, mas que não garantiram o país do exercício reiterado da
usurpação política. O artigo 49, incisos IV e XI, evidenciam o receio
face aos possíveis golpes : cabe ao Congresso Nacional "aprovar o estado
de defesa e a intervenção federal, autorizar o estado de sítio, ou
suspender qualquer uma dessas medidas"(IV) e "zelar pela preservação de
sua comteência legislativa em face da atribuição normativa de outros
poderes" (XI). Excelente princípio, ineficaz na prática. Que outra
coisa temos, senão reiterados golpes, com as Medidas Provisórias que
deveriam atender a necessidades urgentíssimas (e mesmo tais necessidades
têm o sinete da razão de Estado) e se transformaram em meio para o
Executivo legislar? Que outra coisa temos, nas reiteradas ingerências do
Judiciário, legislando à luz do dia, sem reação à altura do Legislativo
? Golpes não são cometidos apenas pelo Executivo, mas nos três poderes e
na sociedade. É por tal motivo que Benjamin Constant imaginou o Poder
Moderador, cujo papel seria neutro para evitar os golpes, viessem de
onde viessem. Por um golpe, na Constituição de 1824 foi usada a idéia de
Constant no Brasil colocando-se o Poder Moderador não como neutro, mas
como superior aos demais. Daí, uma das raízes absolutistas do Executivo
brasileiro, com todas as mazelas do nosso presidencialismo, gigante com
pé de barro.
Por semelhantes motivos, e agora termino de vez, é imperativo levar
adiante a tese de uma Comissão da Verdade. Ao mesmo tempo, na frente
ética, torna-se vital lutar contra a existência de documentos secretos,
votações secretas no Parlamento e na Justiça. Cabe à Comissão da Verdade
a tarefa histórica de nos colocar nas sendas democráticas dos séculos
17 e 18, proibidas aqui pela força portuguesa, pelos canhões imperiais,
e atenuadas ou quase abolidas em plano mundial com o Termidor, o
imperialismo napoleônico, o colonialismo europeu, a determinação
imperial alemã, italiana, inglêsa e norte-americana. Somos herdeiros do
absolutismo e da razão de Estado. Quando Dom João para cá veio, trouxe
em seus navios a recusa da accountability. Não por acaso, o primeiro
fruto eficaz deste veto, a Constituição imperial de 1824, proclama a
irresponsabilidade do Chefe de Estado, (14) afasta a transparência e a
plena soberania popular. Somos um Estado que nasce contra as revoluções
modernas, sob molde absolutista. Entre nós, os programas democráticos de
todos os matizes, dos liberais aos socialistas, foram dizimados pelos
canhões barulhentos ou golpes silentes contra as leis. Aqui vigoram
anomalias como a prerrogativa de foro para políticos, juízes, promotores
de justiça, algo que só tem sentido em regimes de privilégio nos quais o
povo é regido por uma lei supostamente universal, modificada para quem
integra o poder. Se a Comissão da Verdade abrir a via da transparência,
da responsabilização dos agentes públicos, deixando patente que ninguém
pode golpear a democracia, ninguém pode mentir ou esconder os atos
governamentais, ninguém pode matar, torturar, cassar direitos dos
oponentes, ela prestará serviço à cidadania, permitindo diminuir o alto
grau de absolutismo que ainda nutre os que, no Estado e ainda hoje,
sobretudo hoje, imaginam poder usar os recursos públicos como se fossem
seus.
Embora defensor da forma absoluta de poder, Jean Bodin teve a
honestidade intelectual de retomar a tese antiga sobre a tirania que
afirma : "tirano é quem usa os bens dos governados como se fossem seus".
A Comissão da Verdade pode ajudar na luta contra a razão de Estado,
desculpa última dos que defendem tiranias que não prestam contas nem
respeitam a transparência, mas exibem máscara democrática. Permitam que
eu cite o último parágrafo de minha intervenção no Seminário Fronteiras
do Pensamento de 2008: "num país excessivamente centralizado, sem
autonomia, não podem existir na sua plenitude a soberania popular, a
accountability, a justiça e... a verdade". (15)
----
1. Cf. Declaração dos Membros da Comissão Central da CNBB. São Paulo, 18
de fevereiro de 1969. Texto reproduzido integralmente em Igreja e
Governo, Extra 3, Ano I, fevereiro de 1977, pp. 32-33. Cf. Roberto
Romano: Brasil, Igreja contra Estado. SP, Kayrós Ed. 1979, p. 182.
2. Giovanni Botero : La ragion di Stato (a cura di Chiara Continisio), Roma, Donzelli Ed. 1977.
3. ROMANO, Roberto. “O pensamento conservador”. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 3, p. 21-31, nov., 1994.
4. Uma análise recente da política conduzida por James I é feita por
Bernard Boudin : The theological-political origins of the modern state,
the controversy between James I of England & Cardinal Bellarmine
(The Catholic University of America Press, 2010).
5. Henri de Rohan, De l 'interêt des princes et des Etats de la
chrétienté, ed. établie, introduite et annotée para Christian Lazzeri
(Paris, PUF, 1995). Lazzeri apresenta, aí, uma excelente análise do
conceito de "interesse"para a política estatal da época. Analisei com
maior minúcia o tema em meu artigo sobre a Paz de Westphalia, incluído
no volume História da Paz (São Paulo, ed. CONTEXTO).
6. Naudé, Gabriel : Considerations politiques sur le coups d’etat. Roma, 1639. Georg Olms, Ed. 1993.
7 Meinecke, F. : Die Idee der Statsräson in der Neueren Geschichte
(Berlin und München, Druck un Verlag von R. Oldenbourg), 1924, p. 255
(na tradução francêsa de M. Chevalier (Genève, Droz, 1973), p. 187.
8. Cf. Peter Burke: A Fabricação do Rei. A construção da imagem pública
de Luis XIV. (RJ, Jorge Zahar, 1992) e Schwartzenberg, Roger-Gérard :
L´État Spectacle- Essai sur et contre le star system en politique.
(Paris, Flammarion, 1977).
9. Etienne Thuau : Raison d' État et pensée politique à l 'époque de Richelieu (Paris, Albin Michel,2000).
10. Roberto Romano : "Reflexões sobre impostos e razão de Estado" (Revista de Economia Mackenzie •Ano 2• n. 2• p. 75-96).
11. Um estudo muito útil : Robert Damien : Bibliothèque et État,
naissance d'une raison politique dans la France du XVIIe siècle (Paris,
PUF, 1995).
12. Algumas boas pistas são dadas em : Agulhon, M. : Coup d’Etat et
République (Presses de Sciences Po, 1997) ; Boutin, Christophe (ed.) :
Le coup d’Etat, recours à la force ou dernier mot du politique ?
(Editions François-Xavier de Guibert, 2007).
13 Naudé, citado por Jean-Pierre Chrétien-Goni: “Institutio Arcanae”, in
Lazzeri, Christian e Reynié, Dominique: Le Pouvoir de la raison d´État,
Paris, PUF Ed, 1992, p. 139.
14 TITULO 5º “Do Imperador”. CAPITULO I. Do Poder Moderador. Art. 98. O
Poder Moderador é a chave de toda a organisação Politica, e é delegado
privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro
Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da
Independencia, equilibrio, e harmonia dos mais Poderes Politicos. Art.
99. A Pessoa do Imperador é inviolavel, e Sagrada: Elle não está sujeito
a responsabilidade alguma”.
15. Roberto Romano : "Democracia, justiça e eleições" in Fronteiras do
Pensamento, retratos de um mundo complexo (São Leopoldo, Ed. Unisinos,
2008), página 241. Também : Roberto Romano : "Mentira e razão de
Estado", aula inaugural da Escola Superior da Procuradoria do Estado de
São Paulo :
http://escolapge.blogspot.com.br/2007_03_01_archive.html#8375465921568058484 (07/03/2007).
1
1. Cf. Declaração dos Membros da Comissão Central da CNBB. São Paulo, 18
de fevereiro de 1969. Texto reproduzido integralmente em Igreja e
Governo, Extra 3, Ano I, fevereiro de 1977, pp. 32-33. Cf. Roberto
Romano: Brasil, Igreja contra Estado. SP, Kayrós Ed. 1979, p. 182.
2. Giovanni Botero : La ragion di Stato (a cura di Chiara Continisio), Roma, Donzelli Ed. 1977.
3. ROMANO, Roberto. “O pensamento conservador”. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 3, p. 21-31, nov., 1994.
4. Uma análise recente da política conduzida por James I é feita por
Bernard Boudin : The theological-political origins of the modern state,
the controversy between James I of England & Cardinal Bellarmine
(The Catholic University of America Press, 2010).
5. Henri de Rohan, De l 'interêt des princes et des Etats de la
chrétienté, ed. établie, introduite et annotée para Christian Lazzeri
(Paris, PUF, 1995). Lazzeri apresenta, aí, uma excelente análise do
conceito de "interesse"para a política estatal da época. Analisei com
maior minúcia o tema em meu artigo sobre a Paz de Westphalia, incluído
no volume História da Paz (São Paulo, ed. CONTEXTO).
6. Naudé, Gabriel : Considerations politiques sur le coups d’etat. Roma, 1639. Georg Olms, Ed. 1993.
7 Meinecke, F. : Die Idee der Statsräson in der Neueren Geschichte
(Berlin und München, Druck un Verlag von R. Oldenbourg), 1924, p. 255
(na tradução francêsa de M. Chevalier (Genève, Droz, 1973), p. 187.
8. Cf. Peter Burke: A Fabricação do Rei. A construção da imagem pública
de Luis XIV. (RJ, Jorge Zahar, 1992) e Schwartzenberg, Roger-Gérard :
L´État Spectacle- Essai sur et contre le star system en politique.
(Paris, Flammarion, 1977).
9. Etienne Thuau : Raison d' État et pensée politique à l 'époque de Richelieu (Paris, Albin Michel,2000).
10. Roberto Romano : "Reflexões sobre impostos e razão de Estado" (Revista de Economia Mackenzie •Ano 2• n. 2• p. 75-96).
11. Um estudo muito útil : Robert Damien : Bibliothèque et État,
naissance d'une raison politique dans la France du XVIIe siècle (Paris,
PUF, 1995).
12. Algumas boas pistas são dadas em : Agulhon, M. : Coup d’Etat et
République (Presses de Sciences Po, 1997) ; Boutin, Christophe (ed.) :
Le coup d’Etat, recours à la force ou dernier mot du politique ?
(Editions François-Xavier de Guibert, 2007).
13 Naudé, citado por Jean-Pierre Chrétien-Goni: “Institutio Arcanae”, in
Lazzeri, Christian e Reynié, Dominique: Le Pouvoir de la raison d´État,
Paris, PUF Ed, 1992, p. 139.
14 TITULO 5º “Do Imperador”. CAPITULO I. Do Poder Moderador. Art. 98. O
Poder Moderador é a chave de toda a organisação Politica, e é delegado
privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro
Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da
Independencia, equilibrio, e harmonia dos mais Poderes Politicos. Art.
99. A Pessoa do Imperador é inviolavel, e Sagrada: Elle não está sujeito
a responsabilidade alguma”.
15. Roberto Romano : "Democracia, justiça e eleições" in Fronteiras do
Pensamento, retratos de um mundo complexo (São Leopoldo, Ed. Unisinos,
2008), página 241. Também : Roberto Romano : "Mentira e razão de
Estado", aula inaugural da Escola Superior da Procuradoria do Estado de
São Paulo :
http://escolapge.blogspot.com.br/2007_03_01_archive.html#8375465921568058484 (07/03/2007).
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