Minha aula sobre razão de estado mantem sua atualidade, diante das últimas "notícias" da presidência, da AGU, etc.
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Aula Magistral Unicamp (Pro Reitoria de Graduação) 03/05/2012.
Professor Roberto Romano da Silva / Departamento de Filosofia/ IFCH.
Minha geração recebeu o impacto da ditadura Vargas, incluindo a morte do ex-ditador, presidente constitucional em 1954. Apenas dez anos passados, o Brasil sofre novo golpe após várias façanhas golpistas. Lembro o veto à posse de Juscelino Kubitschek e João Goulart, o contra-golpe do Marechal Lott, o levante de militares em Aragarças, a muito provável tentativa de golpe por Jânio Quadros, o golpe militar e civil contra a posse de João Goulart que levou ao parlamentarismo. Finalmente, o golpe civil e militar que se apresentou de 1964.
Golpes e razão de estado são faces de um só bloco prático e teórico. Os primeiros ocorrem desde a origem do mundo moderno. Suas formas variam, mas os frutos favorecem poderes hegemônicos. Estudo a razão de estado desde 1975, quando fazia o doutoramento na Escola de Altos Estudos, em Paris. No livro que resultou daquela pesquisa, Brasil Igreja contra Estado, o núcleo é o regime civil e militar produzido por sucessivos golpes nos embates com a Igreja Católica e a vida brasileira. Os atos institucionais, do AI/1 ao AI/5, foram golpes de Estado sob a égide de setores que incluem as finanças, a indústria, corporações jurídicas, oligarquias regionais e, last but not least, a CNBB que apoiou a ditadura também nos passos seguintes, inclusive o AI/5. A Marcha da Família com Deus pela liberdade, a Cruzada do Rosário e outros movimento de massa somados aos documentos oficiais da CNBB, deram suporte aos golpistas. (1) Analisei, no livro, a soberania sobre corpos e mentes que define o Estado moderno nos seus três monopólios essenciais, o da norma jurídica, da força física, dos impostos. Os trabalhos que publiquei buscam entender as forças que justificam o Estado em suas diversas faces. Assim foi com Conservadorismo Romântico, onde estudo as bases da lógica totalitária, e outros.
A Igreja, afastada do poder secular após sérias controvérsias, não abre mão da "soberania espiritual" tematizada pelo cardeal e Santo Roberto Bellarmino na era do Concilio de Trento (1545-1463). Bellarmino fala em "soberania indireta" do poder eclesiástico, mas é rebatido por filósofos como Hobbes e outros. No mesmo tempo, uma vertente teológica e política próxima a Bellarmino publica, em réplica às doutrinas laicas sobre o Estado, sobretudo contra Maquiavel, o primeiro livro que assume o título Razão de Estado (1589). (2) A razão de Estado, portanto, nasce na Igreja para depois se voltar contra ela, em defesa do poder laico.
RAISON D´ÉTAT
O termo nasce no Renascimento e significa o uso da força ou meio de exceção a serviço do poder que se busca conservar para garantir a ordem social. De Giovanni Botero a Scipione Chiaramonti (1635), ele adquire polissemia, mantendo a idéia de conservação do poder e disciplina contra os governados. O máximo prestígio da fórmula encontra-se no poder absoluto, posto acima e fora das instituições comuns da sociedade e dos procedimentos jurídicos habituais no direito romano modificado pela Igreja ou no direito natural antigo e moderno. Como a expressão indica, o governo absoluto não possui amarras que o prendam aos ritos religiosos e jurídicos anteriores ao seu surgimento.
No Del reggimento di Firenze Francesco Guicciardini, por volta de 1523, fala numa “ragione degli Stati”, designando a razão “pouco cristã e pouco humana” da política. Impossível governar com preceitos evangélicos, o Sermão da Montanha. Outro escritor, Della Casa, distingue a ragion di Stato da razão civil e argumenta que não podem existir duas práticas opostas, o útil distinto do honesto, a moral separada da política. Duas razões diversas são alegadas, mas a primeira, a razão de Estado “opera com a fraude e a violência”. Naqueles autores, a razão de Estado suscita horror diante da soberania laica.
A Razão de Estado, após o século 16, fortalece o tema da conservação política. O primeiro autor relevante, como afirmei, é Giovanni Botero. O livro Della Ragione di Stato (1589), foi a primeira forma teórica do projeto de conservação estatal. "Estado é um domínio firme sobre os povos; e Razão de Estado é notícia dos meios aptos a fundar, conservar, e ampliar aquele dominio. Embora absolutamente falando a razão de Estado ligue-se às três partes mencionadas, parece no entanto, que abrace mais estreitamente a conservação do que as outras”. A razão de Estado surge como conservadora em sentido estrito. Cito a mim mesmo em artigo sobre o conservadorismo : "O que é ‘conservador’? O medo de que a população estrague a festa do poder, destruindo a segurança, a propriedade, os vínculos da tradição (…) Trata-se de conservar o social e o Estado (…) sempre no horizonte do pavor e do medo, da guerra, do soldado, da polícia, do carrasco. Por isso a imagem do dilaceramento, junto com o medo da subversão da ordem, é onipresente nas falas conservadoras. Nelas acentua-se a harmonia como fim político, não importa o preço” (3).
Ragion di Stato, diz Botero, é a busca dos meios para conservar as potências adquiridas, “as manter firmemente, quando cresceram, sustentá-las de tal modo que não se degradem ”. A prudência política é o centro da reflexão em Botero. Trata-se da capacidade de usar o conhecimento dos fatos e dos saberes diversos para fins políticos. O governo deve contar com notícias aprofundadas das coisas e dos atos. Com tais notícias acumuladas, são estabelecidos códigos de comportamento. O governante identifica problemas que exigem a sua intervenção para fins técnicos e para disciplinar os governados. Com as noticias e os comportamentos, o governo ganha tempo na ação, garante o controle do coletivo. O domínio do tempo regula-se segundo a prudência na fórmula de Botero : “non fare novità”. O governo deve reduzir as situações de excepcionalidade, definir padrões habituais de intervenção. As lições de Botero foram praticadas pelo poder absoluto dos soberanos que mantinham o vínculo entre a religião e o governo.
O modelo perfeito de soberano teológico político foi ideado por James I, para quem o governante não deve satisfações aos parlamentos, juízes, súditos. “Um bom rei", escreve James, "enquadra todas as suas ações segundo a lei; mas prende-se a ela só pela boa vontade e para dar exemplo aos súditos. Ele é o senhor sobre todas as pessoas, tem poder de vida e morte. Embora um principe justo não tire a vida de nenhum súdito sem uma lei clara, a mesma lei com a qual ele tira a vida é feita por ele mesmo ou por seus predecessores”. Pai do povo, o rei seria o professor universal, pois os súditos são fracos e ignorantes. Ele independe do judiciário: “A ruindade de um rei nunca pode fazê-lo ser julgado pelos juízes que ele próprio ordenou”. James tem veleidades religiosas. (4)
Não é o que ocorre com outros soberanos e teóricos do poder absoluto, quando se armam com a razão de Estado. Esta última neutraliza os conceitos teológico-politicos ao assumir o interesse estatal. Texto nuclear tem como autor o Duque de Rohan, Do interesse dos príncipes et dos Estados da Cristandade, que analisa como frio estrategista militar e diplomático as riquezas, a forças geopolíticas dos Estados, não pondo a religião como algo mais estratégico do que os demais itens necessários à conservação do poder. (5) E surgem juristas e mesmo teólogos que, em resposta ao desafios de Maquiavel, definem o uso legítimo dos poderes para manter e expandir os bens públicos.
A razão de Estado visa controlar a religião, usando-a como instrumento de governo, e incorpora o segredo para garantir o gabinete do rei, lugar onde não são admitidos os homens comuns. "Mesmo os ateus", diz Jean Bodin, teórico do absolutismo, "concordam : não existe coisa que mais conserve os Estados e Repúblicas do que a religião, principal fundamento da potência monárquica, da execução das leis, da obediência dos suditos". (Seis Livros da República, IV, 7).
O governante acumula segredos e deseja expor os súditos à luz perene. E se estabelece a heterogeneidade entre governados e dirigentes. Nos tempos modernos, diz um teórico, “a verdade do Estado é mentira para o súdito. Não existe espaço político homogêneo da verdade; o adágio é invertido: não mais fiat veritas et pereat mundus, mas fiat mundus et pereat veritas. As artes de governar seguem e ampliam um movimento político profundo, o da ruptura radical (…) que separa o soberano dos governados. O lugar do segredo como instituição política só é inteligível no horizonte desenhado por esta ruptura (…) à medida que se constitui o poder moderno. Segredo encontra sua origem no verbo latino secernere, que significa separar, apartar”. (Jean-Pierre Chrétien-Goni).
Entre as técnicas de governo ocorre o uso do tempo oportuno, lição maquiavélica inspirada no Kayrós grego. Acelerar o tempo em proveito do governo é regra nos programas que integram a razão de Estado. O poder usa a dissimulação para enganar os dirigidos e os concorrentes internacionais, e ganha tempo ao acelerar ou retardar atos, ficando menos sujeito às pressões cronológicas, naturais, econômicas e políticas, bélicas e religiosas. Ele acede, assim, à força de prever (a prudência) que assegura a iniciativa em conflitos ou dificuldades, permitindo conservar o poder.
A razão de Estado busca, na ordem social e política, os setores que mais ganham ou perdem com a conservação do poder. Aos primeiros, ela coopta e aos segundos, afasta. Assim, se define o consenso e a legitimação. O governante, afirma Botero, diminui o poder dos muito fortes e promove os “mezani” que possuem interesses médianos, nem muito ricos ou pobres. Os muito pobres são “perigosos à paz pública” pois não têm interesse algum para salvar : “deve o rei estar seguro deles, o que fará os expulsando do seu Estado (...) ou os obrigando a fazer algo, seja na agricultura, nas artes, ou a algum outro exercício, com o emulemento que os mantenha". Afinal, arremata, “razão de Estado é pouco além de razão de interesse". O governo da razão de Estado organiza a ordem na qual são reconhecidos os interesses e os artifícios que permitem a obediência civil.
Ocorre, portanto, na razão de Estado, uma imposição técnica do mando político. Se deseja manter-se, o governante deve enfrentar o desafio maquiavélico: o poder está sempre sob ameaça e seu tempo é breve. Justo por isso, a necessária vigilância e o segredo entram na raison d´état. Quando não se confia no povo ou nos Estados concorrentes é preciso deles esconder e deles arrancar o máximo. Quanto mais imediato o perigo, mais o aparelho estatal engendra novas técnicas de escuta, controle e ocultação.
Com a democracia produzida nas três grandes revoluções modernas — inglêsa do século 17, a norte-americana e a francêsa no século 18— o segredo foi atenuado pela accountability e transparência. Na forma anterior à democracia o soberano não deve satisfações aos parlamentos, aos juízes, aos governados. Na fala ao Parlamento de 1616, James proclama que “os reis são justamente chamados deuses; pois exercem um modo de semelhança do Divino poder sobre a terra. (...) Deus tem poder de criar ou destruir, fazer ou desfazer ao seu arbitrio, dar vida ou enviar a morte, a todos julgar e a ninguém prestar contas (to be accountable). O mesmo poder possuem os reis. Eles fazem e desfazem seus súditos; têm poder de erguer e abaixar; de vida e morte; julgar acima de todos os súditos em todos os casos e só deve prestar contas a Deus (yet accountable to none but God)”.
Inaceitáveis para um absolutista a soberania do povo e a noção de que os dirigentes devem prestar contas, sem manter segredo, à massa não qualificada. Os príncipes aprendiam na literatura grega e romana a plena desconfiança no povo. Este, para os latinos, era apenas o populo exturbato ex profugo, o improbante populo, o vulgus credulum, vulgus imprudens vel impudens, vulgus stolidum etc. Gabriel Naudé nas Considerações Políticas sobre os golpes de Estado (1639) (6) diz ser preciso cautela contra o povo, animal de muitas cabeças “vagabundo, errante, louco, embriagado, sem conduta, sem espírito nem julgamento….a turba e laia popular joguete dos agitadores: oradores, pregadores, falsos profetas, impostores, políticos astutos, sediciosos, rebeldes, despeitados, supersticiosos”.
Gradativamente surgem outras percepções do povo como em Althusius. No final da Idade Média a doutrina do Estado definira que o fundamento do governo residia na submissão voluntária e contratual das comunidades governadas. Para Althusius, ao contrário, o summus magistratus é o povo. Na Inglaterra, os conflitos da vida capitalista triunfante após a Reforma de Henrique VIII, ergueram facções, dos Levellers aos Diggers, mesclando religião e imperativos democráticos. Nasce a idéia da accountability: o rei não presta contas apenas ao ser divino, mas ao povo: Vox populi, vox dei. John Milton expressa os dois princípios: “… Se o rei ou magistrado são infiéis aos seus compromissos o povo é liberto de sua palavra”, frases que definem o principio da nova legitimidade política. O summus magistratus popular exige responsabilidade dos que agem em seu nome. As teses democráticas inglêsas repercutem pela Europa inteira e integram o corpus doutrinário que molda novas formas de Estado como a própria Inglaterra, a França, os EUA. A democracia integra o subsolo das Luzes, contra o mando absoluto seja ele religioso ou laico.
Na mais relevante obra sobre a razão de Estado do seculo 20, F. Meinecke diz que aquelas doutrinas e práticas estão entre os “principais fatores que abriram a via para o movimento das Luzes”. Mas adianta : “as próprias Luzes combateram mais tarde apaixonadamente a razão de Estado devido ao seu individualismo, fruto do direito natural ou de seus principios humanitários”. Na verdade, não vem do individualismo iluminista a sua critica à doutrina, um esteio do poder absoluto na Europa. Ela vem dos movimentos contra o arbítrio real, sobretudo na Inglaterra.(7)
Calaram fundo nos iluministas os princípios democráticos inglêses. Enuncia Diderot nas Observações sobre o Projeto de Constituição de Catarina 2 : “Não existe verdadeiro soberano a não ser a nação; não pode existir verdadeiro legislador, a não ser o povo; é raro que o povo se submeta sinceramente a leis que lhes são impostas; ele as amará, as respeitará, obedecerá, as defenderá como sua obra própria se é delas o autor (…) A primeira linha de um código bem feito deve ligar o soberano; ele deve começar assim : `Nós, o povo (e lembremos que este será o início da Constituição norte-americana : We the People…) e nós, soberano desse povo, juramos conjuntamente essas leis pelas quais seremos igualmente julgados; e se ocorrer a nós, soberano, a intenção de mudá-las ou infringi-las, como inimigo de nosso povo, é justo que ele seja o nosso, que ele seja desligado do juramento de fidelidade, que ele nos processe, nos deponha e mesmo nos condene à morte se o caso exige; esta é a primeira lei de nosso código”.
As Luzes têm sua optica política exposta na Enciclopédia dirigida por Diderot. Nela, em verbetes do coordenador ou auxiliares, existe uma séria crítica à razão de Estado.Se consultamos o verbete “Raison d’État” ( redigido por Jaucourt mas revisado por Diderot), notamos que a própria exposição daquela idéia já é crítica. Cito um trecho : "Alguns autores acreditaram que existem ocasiões nas quais os soberanos são autorizados a fugir das leis severas da probidade, e que o bem do Estado lhes permitiria agir de modo injusto diante de outros estados, que a vantagem do povo justificaria a irregularidade em suas ações". Assim, no intróito do verbete o condicional mostra a suspeita na doutrina. Diderot e seus pares tiveram relações difíceis, para não dizer conflituosas, com Frederico o Grande da Prússia e Catarina II, os supostos “monarcas esclarecidos”, velhas raposas da razão de Estado.
As injustiças, continua o verbete, "autorizadas pela raison d´État, consistem em invadir o território de um vizinho cujas disposições são suspeitas, apossar-se de sua pessoa, privá-la das vantagens a que tem direito sem motivo confessado ou sem declaração de guerra". A descrição dos atos subsumidos sob a razão de Estado, das Luzes aos nossos dias, é constante. A retórica empregada na justificação da doutrina é a mesma. Adianta o texto: “Os que sustentam uma idéia tão estranha (grifo meu), a fundamentam no princípio de que os soberanos devem procurar tudo o que pode fazer feliz e tranqüilos os povos que lhes são submetidos, e têm o direito de usar todos os meios que levam ao fim salutar. ” Temos aí resumida a essência do cálculo estatal. Segue o remédio para o problema: "por mais especioso que seja o motivo [a felicidade e a segurança tranqüila dos povos], importa para a felicidade do mundo encerrá-lo en justas barreiras: é certo que um soberano deve procurar o que conforta a sociedade por ele governada; mas não à custa dos outros povos. As nações e os particulares têm direitos recíprocos. Sem isto, todos os soberanos, com os mesmos direitos, estariam num estado de desconfiança e de guerra contínua ".
Conclusão do verbete: "os representantes dos povos, como os indivíduos na sociedade, não podem isentar a si mesmos das leis da honra e da probidade. Seria abrir as portas para a desordem universal instituir a máxima que destruiria os vínculos entre as nações, e que exporia as mais fracas às opressões das mais fortes. Tais injustiças não podem ser permitidas, qualquer o nome que se use para disfarçá-las”.
Na definição do ser estatal o autor acusa os defensores da razão de Estado para quem astúcia e força, usadas sem regra nem lei pelos soberanos, justificam-se pela segurança e felicidade dos súditos. Mas o ser político, pensa o enciclopedista, não é feito só tendo em vista aqueles pontos: "Estado", escreve, “designa uma sociedade de homens vivendo juntos sob um governo qualquer, felizes ou infelizes”. Se o povo é infeliz em suas terras, não é pela conquista ou invasão de outros que ele alcança a beatitude.” Seguidas as Luzes, muitos imperialismos seriam evitados, como o assumido pelos nazista à busca de Lebensraum. A Revolução francêsa tenta acabar com o segredo, as desigualdades entre governantes e dirigidos, a razão de Estado. E segue a soberania popular, a responsabilização dos que operam a máquina política, a transparência.
Passada a era das revoluções, para usar o termo de Eric Hobsbawn, o poder estatal apresenta agudos problemas. A maioria dos Estados enfrenta uma crise inédita de autoridade e disciplina sobre o mercado, as empresas multinacionais, etc. Mas afirma cada vez mais o controle policial e, mesmo, militar, sobre os cidadãos que recusam ser espoliados de suas poupanças, empregos, vida em prol de instituições financeiras golpistas. Dessa crise, a Europa da Grécia é apenas um sinal de alerta. Na dialética contraditória ocorrida no âmbito democrático —os demagogos prometem plena transparência ao povo, mas precisam assumir o segredo estatal, são eleitos pelo voto secreto e, nos palácios, usam o segredo para domar as massas que os sufragaram— o pêndulo vai da licença às tiranias. A resposta do poder ao segredo do voto foi o recrudescimento e a manipulação inaudita do segredo de Estado.
Após a Segunda Guerra, a Guerra Fria, o Macarthismo as formas autoritárias, o segredo aumenta sua abrangência. Se os países socialistas, supostamente repúblicas populares, quebram a base da accountability e da fé pública em proveito dos governos, algo similar ocorre hoje na Europa e nos EUA. Nas formas imperiais dirigidas pela Otan, nas políticas que restringem as liberdades públicas nos EUA, como na Lei Patriótica, temos um avanço da razão de Estado. Consideremos a lição de Norberto Bobbio: “O governo democrático desenvolve sua atividade em público, sob os olhos de todos. E deve desenvolver a sua própria atividade sob os olhos de todos porque todos os cidadãos devem formar uma opinião livre sobre as decisões tomadas em seu nome. De outro modo, qual a razão os levaria periodicamente à urnas e em quais bases poderiam expressar o seu voto de consentimento ou recusa? (…) o poder oculto não transforma a democracia, a perverte. Não a golpeia com maior ou menor gravidade em um de seus orgãos essenciais, mas a assassina”.
A democracia surge com a accountability a ser cobrada dos governos. A radicalidade dos democratas inglêses rendeu frutos na Europa e na América do Norte. Os seus postulados sustentam a Declaração Universal dos Direitos Humanos. A recusa, durante a Guerra Fria, dos elementos jurídicos e políticos sobre a accountability levam os governos à quebra de padrões democráticos. Isto redunda em prejuízo dos povos em terras hegemônicas e calamidades para os dominados, do Vietnã ao Chile e dele ao Irã e Iraque. O segredo permite casos como o Irã contras, a ajuda aos Talibãs, cuja ascensão ao poder é entendida como vitória sobre a URSS. O segredo permite que nas duas guerras do Iraque informações vitais sejam negadas ao público. A administração G. W. Bush conduz o segredo ao máximo possível, incluindo-se o engano usado deliberadamente, como no caso das armas de destruição em massa. O segredo embaralha interesses de grupos privados e assuntos de governo, como nas licitações para a espoliação do Iraque ao redor do petróleo. O governo norte-americano de hoje, mesmo sob os democratas de Barack Obama, emprega meios secretos para atingir alvos internos e internacionais, não raro retrocedendo na política doméstica quando se trata do mesmo segredo. Em abril de 1994 surge a Public Law (número 103-236) estadunidense criando certa Comissão para reduzir o segredo governamental, tendo a frente Daniel Patrick Moyniham, do Partido Democratico, antigo membro dos gabinetes Kennedy, Johnson, Nixon e Ford. A comissão publica um relatório (3/05/1997) cujas palavras iniciais proclamam: "É tempo de um novo caminho para pensar o segredo" Depois, o segredo retoma a iniciativa.
A tensa passagem da razão de Estado ao governo público define o destino da democracia. Assistimos, nos últimos tempos, a derrocada quase absoluta de governos diante de forças sacralizadas como o “mercado”. Em nome da “confiança” daquele último, programas expostos em longos anos aos cidadãos seguem para o vazio. Com uso do segredo “planos” econômicos são impostos, lesam os contribuintes em nome de interesses alheios aos seus países. Os referidos planos favorecem alvos financeiros hegemônicos, sobretudo os dos grandes bancos, impunes e repetitivos na arte de se apropriar de recursos públicos, como ocorreu em 2008. Hoje, eles geram a bancarrota povos inteiros. Não se deve esquecer que há, naquelas ações criminosas, além das técnicas de propaganda e de engano, a força da razão de Estado e do segredo. (8)
O segredo é essencial para se refletir sobre a forma democrática. Governos autoritários exasperam a prática de esconder os pontos maiores das políticas no setor público. Entramos no paradoxo: o público é definido fora do público. A opacidade estatal atinge níveis inéditos. O aumento do segredo em Estados hegemônicos diminui, ipso facto, a possível força dos dependentes ou não hegemônicos.
Sendo fato social, o segredo se manifesta em todos os coletivos humanos, das igrejas às seitas, dos Estados aos partidos, dos advogados aos juízes, dos quartéis às guerrilhas, das corporações aos pequenos vendedores de rua, da imprensa à formas de censura, dos laboratórios e bibliotecas universitários à fábricas, dos bancos às obras de caridade. Se descermos mais fundo, da sociologia à ordem antropológica, podemos dizer que o segredo é o lado oposto e necessário da linguagem comunicacional. A prudência define a passagem de uma prática ou experiência do segredo, antropológica e éticamente correta, para uma outra, em que o poder abusivo se manifesta. O segredo integra a vida como uma realidade não visivel.
A imprensa atenua o segredo de Estado e os demais sigilos (da vida privada à religiosa, sem deixar de lado a economia). Ela, no entanto, insere-se num complexo de interesses que a tornam constantemente atriz, cúmplice e vítima dos poderes naquelas várias esferas. Todos aqueles setores percebem na imprensa uma aliada, quando não instrumento, se o alvo é propagar os seus intentos, procurando identificá-los ao “interesse geral”. Ela é bem vinda naquela cirscunstância. Empresas e indústrias, bancos e cúpulas eclesiásticas, gabinetes políticos ou militares, partidos e seitas, todos cortejam a midia na busca de popularizar a sua “mensagem”, obter lucros e favores de governos, ameaçar concorrentes. E todos a criticam acerbamente quando não conseguem efetivar, por seu intermédio, aqueles fins.
Na razão de Estado existem pontos essenciais que enumero a seguir:
1) conservar o poder soberano contra comoções da sociedade civil e ataques de outros estados. A polícia e os exércitos modernos têm vínculo direto com o poder secular e sua razão. No caso inglês e francês, mas também no alemão, italiano, holandes, e outros, as divisões religiosas, de classe, econômicas e políticas ameaçavam inviabilizar o mando estatal, com um retorno à pulverização jurídica imperante na idade média do feudalismo.
2) instaurar uma divisão no corpo político e jurídico, permitindo aos que operam a máquina estatal um controle jurídico, político, econômico, bélico, policial sobre as sociedades submetidas à soberania. Roberto Romano : Revista de Economia Mackenzie. Visto o desprezo dos teóricos da razão de Estado pela massa do povo, eles se voltaram para a formação de elites intelectuais e dirigentes cuja tarefa seria conservar o poder contra a turba, o vulgo. A razão de estado, assim, nasce e cresce como essencialmente contrária à soberania popular.
3) instrumentalizar técnicas do segredo, da dissimulação, da irresponsabilidade do soberano e absolutismo do governo. O poder se esconde e esconde suas iniciativas dos olhos e ouvidos cidadãos e das forças internacionais. Ao mesmo tempo, ele desvela tendencialmente os segredos da cidadania e dos soberanos inimigos ou concorrente. Polícia e espionagem são instrumentos essenciais da razão de estado.
4) o poder estatal não apenas esconde suas iniciativas. Ele parte para a conquista da opinião pública desde o século 17, com a propaganda que aproveita os novos meios de influência como os jornais, os libelos, etc. para afirmar o bem fundado das políticas conduzidas pelo governo e para pulverizar o mais possível as oposições internos ao governo e as propagandas de outras soberanias. (9)
5) ampliar as prerrogativas do governante, permitindo uma leitura e interpretação das leis favoráveis às suas decisões políticas: segundo estudiosos da razão de Estado nossos contemporâneos, Christian Lazzeri e Dominique Reynié, "O Estado é jogador que não aceita perder, e modifica as regras do jogo. O escândalo que encobre a razão de Estado trai nosso consaço como governados e nosso ceticismo diante das leis constitucionais".
6) no mesmo passo em que recolhe os segredos dos dirigidos e dos países concorrentes ou inimigos, a razão de estado os organiza em saberes, usando também profissionais nos mais diversos planos do conhecimento. A coleta de informações é dirigida, com auxílio estatístico, para a economia (sobretudo os bens dos governados e o conhecimento das potencialidades do solo, dos rios, do mar, as atividades fabrís, as corporações, os bens dos nobres e dos eclesiásticos, etc), para os costumes (as técnicas, produzidas por intelectuais da Igreja, como São Carlos Borromeu com o Livro do Estado das Alma) (10) a guerra, a diplomacia, etc. São instituidos escritórios que selecionam e guardam documentos, dados, etc. Ao mesmo tempo, sob a égide de Gabriel Naudé, um dos principais autores da razão de Estado na Europa, são aprimoradas bibliotecas e instaurados arquivos para fornecer aos governantes o maior número e o mais exato possível no campo dos saberes, tendo em vista o uso político. (11)
7) para dominar as atividades sociais e políticas, a razão de estado concentra no ápice do poder as prerrogativas antes usufruídas pela Igreja, pelos municípios (invenção romana que persistiu durante a idade média e começou a declinar de fato com o poder absoluto da razão de estado, perdendo autonomia). Todas as funções do Estado passam a ser definidas pelo soberano, inclusive a justiça, apesar das resistências de tribunais e juristas. Quem se ergue contra o poder sabe que ele usa a lei com hermenêutica interessada. A razão de estado é bem traduzida para o vernáculo com o dito "aos amigos, tudo, aos inimigos a lei".
8) No velha busca de saber quem é soberano, a Lei ou o poderoso, a resposta da razão de Estado é clara: o segundo é fonte de legítima interpretação a aplicação jurídica. Define-se a rapsódica, senão contínua, quebra da lei quando se trata dos governantes. A técnica tem nome : golpe de Estado. Este, por sua vez, não se restringe às ações de exércitos que invadem palácios, fecham parlamentos e desobedecem a justiça. Nem todo golpe se resume à quartelada. Pelo contrário, os golpes de Estado melhor sucedidos são inapercebidos pela maioria, consistem nas "leituras" enviezadas das Constituições em proveito de interesses governamentais ou de mercado.
Na essência da razão de Estado temos a prática habitual dos golpes, fruto direto da promoção elitista e hostilidade contra a democracia. Se o povo sempre erra, os golpes impede que ele chegue ao poder e, caso ele tenha escolhido dirigentes, estes últimos não corresponderiam aos mais altos interesses do Estado. Quando ocorre o golpe do Termidor, que marcou o fim da fase democrática na Revolução Francesa, Boissy d'Anglas disse com todas as letras que só podem escolher e votar no Estado os proprietários, ou seja, os "melhores e responsáveis". Daí para os golpes de Napoleão e da Contra Revolução foi apenas um passo.
Golpes de Estado (12)
Sigamos a definição de golpe, unida à de razão de estado, por Gabriel Naudé : o golpe, diz ele, surge de "ações ousadas e extraordinárias que os príncipes são constrangidos a executar em assuntos difíceis e como desesperados, contra o direito comum, sem respeitar mesmo nenhuma ordem nem forma de justiça, prejudicando o interesse do particular tendo em vista o bem do público". Golpe e razão de Estado suspendem o direito e a justiça. Naudé louva o governo francês que fabricou o massacre da Noite de São Bartolomeu. A guerra religiosa precisava ser detida, degolar protestantes foi o modo de prevenir todos os religiosos que o Leviatã estatal não mais toleraria mortes de particulares por particulares. Decidir a morte entra na prerrogativa única do Estado.
O moderno poder político é movido por golpes canhestros ou eficazes. Basta consultar a crônica da Europa, crônica da razão de estado, para verificar que todos os modos legítimos de mando foram agredidos por golpistas de várias tendências. Assim, se afirmou o poder de Luis 11, Catarina de Medicis e Henrique 4, sem falar nos mestres golpistas por excelência, Richelieu e Mazarino. O mesmo pode ser dito sobre Robespierre, a família Napoleão, Petain e Laval também integram a fieira do golpismo. Na Inglaterra, a ditadura de Cromwell, com seus homens armados, fecha o Parlamento e afastara monarquistas e liberais (Levellers) da Revolução. Em Portugal, um golpe determina a luta de Pedro 4, o nosso Pedro Primeiro, contra seu irmão. O século 20 português conhece golpes continuados. O fascismo italiano foi uma série de golpes, o mesmo na Espanha. Na Alemanha e na Rússia do século 20, regimes virulentos dominam o Estado à força de golpes.
Os pensadores modernos buscam distinguir a força física (ao dispor do governante) e a legitimidade ostentada, não raro, sem fundamentos sólidos. Daí a separação —ainda hoje polêmica— entre a moral dos homens comuns e a moral dos dirigentes. Gabriel Naudé, a partir daquela separação entre as duas formas da moralidade distingue duas justiças. “Uma é natural, universal, nobre e filosófica”. A outra é “artificial, particular, política, feita e destinada às necessidades dos governos e dos Estados”. (13) Na condução do Estado a moral se inverte e desobedece os parâmetros comuns. O governante hábil não se prende aos limites legais e à tradição de legitimidade dos títulos, usos e costumes.
Da nova licença atribuída ao governante surge a noção moderna de golpe de Estado. Segundo Naudé, naqueles golpes tudo é invertido em relação à normalidade (do direito, da economia, dos valores). No golpe o efeito precede a causa e o esperado não se produz. Cito o próprio escritor: “nos golpes de Estado, vemos a tempestade cair antes dos trovões; as matinas são ditas antes que o sino toque; a execução precede a sentença; (…) um indivíduo recebe o golpe que imaginava dar, outro morre quando pensava estar em segurança, um terceiro recebe o golpe que não esperava; tudo ocorre à noite, no escuro e entre névoas e trevas”. Temos em tal imagem tudo o que define as lutas das Luzes contra o absolutismo e a razão de Estado. Os golpes espalham trevas e delas dependem para sua eficácia. As Luzes buscam a transparência, a suspensão do segredo.
No Brasil, temos os golpes do Imperador ao fechar o parlamento; dos regentes; dos militares que derrubam a monarquia; de Getúlio que instala uma ditadura feroz; dos civis e militares erguidos contra a ordem estabelecida em 1961 e 1964. Depois, o golpe dentro do golpe no AI-5, o golpe de Abril, etc. É preciso não banalizar a noção de golpe, cujo fim é impedir a força de adversários no Estado e nas sociedades. Eles buscam impor formas de pensamento (a Doutrina de Segurança Nacional) e suspendem os mecanismos jurídicos das anteriores formas de poder. Sem delegação das urnas, os seus atores se legitimam invocando a urgência ou a necessidade. Foi assim no AI-1 : "A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma." O golpe pode, se necessário segundo os seus atores, aposentar o voto, cassar mandatos, fechar partidos.
Volto ao importante estudo de Gabriel Naudé, as Considerações Políticas sobre os golpes de Estado (1640). O texto pode ser lido on line, na Biblioteca Gallica. Naudé situa o golpe no campo da prudência e todas as prudências dependem de uma só, ilustrada por Luis 11, o "rei aranha" cuja máxima era "quem não sabe dissimular, não sabe governar". A regra dos governos reside na desconfiança universal e na dissimulação que consiste ou em omitir (pretender que nada foi visto pelos poderosos) ou "na ação e na comissão, o ganho de alguma vantagem para atingir alvos por meios encobertos". Omissões e comissões nutrem os poderosos e fornecem "os diversos meios, razões e conselhos usados pelos príncipes para manter sua autoridade e a situação do público" sem "parecer transgredir o direito comum e causar suspeita de fraude e injustiça". O rei absoluto precisava, além da intimidação geral, comprar apoios dos nobres, dos eclesiásticos, etc. O modo conservador de governo depende muito da venalidade, das alocações de cargos em troca de mais poder, etc. Até hoje, no mundo inteiro que se imagina democrático, muitos operadores do Estado vivem das omissões e comissões. É bom recordar que o governo da razão absoluta do Estado foi dos mais corruptos, em termos históricos.
Um golpista indicado por Naudé é Dionísio, tirano de Siracusa. Querendo impedir as reuniões dos opositores agendadas para a noite, ele afrouxa sem alarde as penas dos assaltantes... Rapidez, quebra de costumes e de jurisprudência integram os golpes. Neles "vemos cair a tempestade sem ter ouvido os trovões (...) as Matinas são entoadas antes do sino tocar, a execução precede a sentença. Fulano recebe o golpe que pensava aplicar, sicrano morre, imaginando estar seguro." Truque jurídico golpista : "o processo é instruído após a execução". A nova ordem se livra das "pequenas formalidades exigidas pela justiça". Naudé profetiza os regimes sangrentos do século 20. No golpe o político precisa ser visto "como o pai que cauteriza um membro do filho para salvar a sua vida". Os golpes devem ser radicais como nos "cirurgiões competentes que, ao abrir uma veia, tiram o sangue para limpar os corpos de seus humores nocivos". Segundo Naudé não existe ação eficaz se os planos golpistas são publicados. Jamais ocorreu golpe sem a purga dos "membros apodrecidos" : o golpe é intolerante, ignora "as pequenas formalidades da justiça".
Mas o golpe longe de sanar as guerras civis, as perpetua levando-as ao plano internacional. Quem deseja o convívio político segue as "pequenas formalidades" jurídicas. Sem elas, ninguém está seguro, mesmo os golpistas, pois os regimes não são eternos e o golpista de hoje é a vítima do golpe, amanhã. A democracia exige simultaneidade das diferenças ideológicas, nela não existem inimigos, mas adversários que merecem respeito e jamais ataques fratricidas. Qual o terreno fértil dos golpes? A desconfiança, a dissimulação, os ódios espalhados pelos que empestam e sufocam a vida política. Tais são os primeiros e últimos obstáculos a serem vencidos.
Termino. Como disse, em meu livro Brasil, Igreja contra Estado, analiso as relações tensas entre o catolicismo hierárquico e os dirigentes do Estado produzido por vários golpes, os de origem remota (como o que moldou o Estado Novo) e os movidos pela burguesia nacional e seus militares. Uma figura que une a razão de Estado varguista e a de 1964 é Francisco Campos. Sua mão ainda se apresenta nos Atos Institucionais, do primeiro ao último. Qual razão ensandecida impulsiona as ditaduras que moldaram o Brasil do século 20? A razão de Estado, aqui, teve alvos propagandísticos ou reais, como o programa econômico e ideológico que, para nossa felicidade, nos arrancaria do subdesenvolvimento: Brasil, grande potência.
Os fins clássicos da razão de Estado foram defendidos clara ou hipocritamente por juristas, militares, banqueiros, industriais, e mesmo setores do clero brasileiro : a quebra da lei em favor dos governantes, o segredo (mesmo Decreto secreto foi usado na ditadura), a fraude, a vigilância policial, as torturas, o desaparecimento de opositores, a censura à imprensa, o exílio, as cassações de mandatos e destituição de juízes. Vivemos, as duas ditaduras sob o império da razão de Estado, tendo o segredo como ética perversa, anti-democrática e assassina.
Hoje, a Constituição Federal de 1988 prevê remédios contra o golpe de Estado, mas que não garantiram o país do exercício reiterado da usurpação política. O artigo 49, incisos IV e XI, evidenciam o receio face aos possíveis golpes : cabe ao Congresso Nacional "aprovar o estado de defesa e a intervenção federal, autorizar o estado de sítio, ou suspender qualquer uma dessas medidas"(IV) e "zelar pela preservação de sua comteência legislativa em face da atribuição normativa de outros poderes" (XI). Excelente princípio, ineficaz na prática. Que outra coisa temos, senão reiterados golpes, com as Medidas Provisórias que deveriam atender a necessidades urgentíssimas (e mesmo tais necessidades têm o sinete da razão de Estado) e se transformaram em meio para o Executivo legislar? Que outra coisa temos, nas reiteradas ingerências do Judiciário, legislando à luz do dia, sem reação à altura do Legislativo ? Golpes não são cometidos apenas pelo Executivo, mas nos três poderes e na sociedade. É por tal motivo que Benjamin Constant imaginou o Poder Moderador, cujo papel seria neutro para evitar os golpes, viessem de onde viessem. Por um golpe, na Constituição de 1824 foi usada a idéia de Constant no Brasil colocando-se o Poder Moderador não como neutro, mas como superior aos demais. Daí, uma das raízes absolutistas do Executivo brasileiro, com todas as mazelas do nosso presidencialismo, gigante com pé de barro.
Por semelhantes motivos, e agora termino de vez, é imperativo levar adiante a tese de uma Comissão da Verdade. Ao mesmo tempo, na frente ética, torna-se vital lutar contra a existência de documentos secretos, votações secretas no Parlamento e na Justiça. Cabe à Comissão da Verdade a tarefa histórica de nos colocar nas sendas democráticas dos séculos 17 e 18, proibidas aqui pela força portuguesa, pelos canhões imperiais, e atenuadas ou quase abolidas em plano mundial com o Termidor, o imperialismo napoleônico, o colonialismo europeu, a determinação imperial alemã, italiana, inglêsa e norte-americana. Somos herdeiros do absolutismo e da razão de Estado. Quando Dom João para cá veio, trouxe em seus navios a recusa da accountability. Não por acaso, o primeiro fruto eficaz deste veto, a Constituição imperial de 1824, proclama a irresponsabilidade do Chefe de Estado, (14) afasta a transparência e a plena soberania popular. Somos um Estado que nasce contra as revoluções modernas, sob molde absolutista. Entre nós, os programas democráticos de todos os matizes, dos liberais aos socialistas, foram dizimados pelos canhões barulhentos ou golpes silentes contra as leis. Aqui vigoram anomalias como a prerrogativa de foro para políticos, juízes, promotores de justiça, algo que só tem sentido em regimes de privilégio nos quais o povo é regido por uma lei supostamente universal, modificada para quem integra o poder. Se a Comissão da Verdade abrir a via da transparência, da responsabilização dos agentes públicos, deixando patente que ninguém pode golpear a democracia, ninguém pode mentir ou esconder os atos governamentais, ninguém pode matar, torturar, cassar direitos dos oponentes, ela prestará serviço à cidadania, permitindo diminuir o alto grau de absolutismo que ainda nutre os que, no Estado e ainda hoje, sobretudo hoje, imaginam poder usar os recursos públicos como se fossem seus.
Embora defensor da forma absoluta de poder, Jean Bodin teve a honestidade intelectual de retomar a tese antiga sobre a tirania que afirma : "tirano é quem usa os bens dos governados como se fossem seus". A Comissão da Verdade pode ajudar na luta contra a razão de Estado, desculpa última dos que defendem tiranias que não prestam contas nem respeitam a transparência, mas exibem máscara democrática. Permitam que eu cite o último parágrafo de minha intervenção no Seminário Fronteiras do Pensamento de 2008: "num país excessivamente centralizado, sem autonomia, não podem existir na sua plenitude a soberania popular, a accountability, a justiça e... a verdade". (15)
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1. Cf. Declaração dos Membros da Comissão Central da CNBB. São Paulo, 18 de fevereiro de 1969. Texto reproduzido integralmente em Igreja e Governo, Extra 3, Ano I, fevereiro de 1977, pp. 32-33. Cf. Roberto Romano: Brasil, Igreja contra Estado. SP, Kayrós Ed. 1979, p. 182.
2. Giovanni Botero : La ragion di Stato (a cura di Chiara Continisio), Roma, Donzelli Ed. 1977.
3. ROMANO, Roberto. “O pensamento conservador”. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 3, p. 21-31, nov., 1994.
4. Uma análise recente da política conduzida por James I é feita por Bernard Boudin : The theological-political origins of the modern state, the controversy between James I of England & Cardinal Bellarmine (The Catholic University of America Press, 2010).
5. Henri de Rohan, De l 'interêt des princes et des Etats de la chrétienté, ed. établie, introduite et annotée para Christian Lazzeri (Paris, PUF, 1995). Lazzeri apresenta, aí, uma excelente análise do conceito de "interesse"para a política estatal da época. Analisei com maior minúcia o tema em meu artigo sobre a Paz de Westphalia, incluído no volume História da Paz (São Paulo, ed. CONTEXTO).
6. Naudé, Gabriel : Considerations politiques sur le coups d’etat. Roma, 1639. Georg Olms, Ed. 1993.
7 Meinecke, F. : Die Idee der Statsräson in der Neueren Geschichte (Berlin und München, Druck un Verlag von R. Oldenbourg), 1924, p. 255 (na tradução francêsa de M. Chevalier (Genève, Droz, 1973), p. 187.
8. Cf. Peter Burke: A Fabricação do Rei. A construção da imagem pública de Luis XIV. (RJ, Jorge Zahar, 1992) e Schwartzenberg, Roger-Gérard : L´État Spectacle- Essai sur et contre le star system en politique. (Paris, Flammarion, 1977).
9. Etienne Thuau : Raison d' État et pensée politique à l 'époque de Richelieu (Paris, Albin Michel,2000).
10. Roberto Romano : "Reflexões sobre impostos e razão de Estado" (Revista de Economia Mackenzie •Ano 2• n. 2• p. 75-96).
11. Um estudo muito útil : Robert Damien : Bibliothèque et État, naissance d'une raison politique dans la France du XVIIe siècle (Paris, PUF, 1995).
12. Algumas boas pistas são dadas em : Agulhon, M. : Coup d’Etat et République (Presses de Sciences Po, 1997) ; Boutin, Christophe (ed.) : Le coup d’Etat, recours à la force ou dernier mot du politique ? (Editions François-Xavier de Guibert, 2007).
13 Naudé, citado por Jean-Pierre Chrétien-Goni: “Institutio Arcanae”, in Lazzeri, Christian e Reynié, Dominique: Le Pouvoir de la raison d´État, Paris, PUF Ed, 1992, p. 139.
14 TITULO 5º “Do Imperador”. CAPITULO I. Do Poder Moderador. Art. 98. O Poder Moderador é a chave de toda a organisação Politica, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independencia, equilibrio, e harmonia dos mais Poderes Politicos. Art. 99. A Pessoa do Imperador é inviolavel, e Sagrada: Elle não está sujeito a responsabilidade alguma”.
15. Roberto Romano : "Democracia, justiça e eleições" in Fronteiras do Pensamento, retratos de um mundo complexo (São Leopoldo, Ed. Unisinos, 2008), página 241. Também : Roberto Romano : "Mentira e razão de Estado", aula inaugural da Escola Superior da Procuradoria do Estado de São Paulo :
http://escolapge.blogspot.com.br/2007_03_01_archive.html#8375465921568058484 (07/03/2007).
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1. Cf. Declaração dos Membros da Comissão Central da CNBB. São Paulo, 18 de fevereiro de 1969. Texto reproduzido integralmente em Igreja e Governo, Extra 3, Ano I, fevereiro de 1977, pp. 32-33. Cf. Roberto Romano: Brasil, Igreja contra Estado. SP, Kayrós Ed. 1979, p. 182.
2. Giovanni Botero : La ragion di Stato (a cura di Chiara Continisio), Roma, Donzelli Ed. 1977.
3. ROMANO, Roberto. “O pensamento conservador”. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 3, p. 21-31, nov., 1994.
4. Uma análise recente da política conduzida por James I é feita por Bernard Boudin : The theological-political origins of the modern state, the controversy between James I of England & Cardinal Bellarmine (The Catholic University of America Press, 2010).
5. Henri de Rohan, De l 'interêt des princes et des Etats de la chrétienté, ed. établie, introduite et annotée para Christian Lazzeri (Paris, PUF, 1995). Lazzeri apresenta, aí, uma excelente análise do conceito de "interesse"para a política estatal da época. Analisei com maior minúcia o tema em meu artigo sobre a Paz de Westphalia, incluído no volume História da Paz (São Paulo, ed. CONTEXTO).
6. Naudé, Gabriel : Considerations politiques sur le coups d’etat. Roma, 1639. Georg Olms, Ed. 1993.
7 Meinecke, F. : Die Idee der Statsräson in der Neueren Geschichte (Berlin und München, Druck un Verlag von R. Oldenbourg), 1924, p. 255 (na tradução francêsa de M. Chevalier (Genève, Droz, 1973), p. 187.
8. Cf. Peter Burke: A Fabricação do Rei. A construção da imagem pública de Luis XIV. (RJ, Jorge Zahar, 1992) e Schwartzenberg, Roger-Gérard : L´État Spectacle- Essai sur et contre le star system en politique. (Paris, Flammarion, 1977).
9. Etienne Thuau : Raison d' État et pensée politique à l 'époque de Richelieu (Paris, Albin Michel,2000).
10. Roberto Romano : "Reflexões sobre impostos e razão de Estado" (Revista de Economia Mackenzie •Ano 2• n. 2• p. 75-96).
11. Um estudo muito útil : Robert Damien : Bibliothèque et État, naissance d'une raison politique dans la France du XVIIe siècle (Paris, PUF, 1995).
12. Algumas boas pistas são dadas em : Agulhon, M. : Coup d’Etat et République (Presses de Sciences Po, 1997) ; Boutin, Christophe (ed.) : Le coup d’Etat, recours à la force ou dernier mot du politique ? (Editions François-Xavier de Guibert, 2007).
13 Naudé, citado por Jean-Pierre Chrétien-Goni: “Institutio Arcanae”, in Lazzeri, Christian e Reynié, Dominique: Le Pouvoir de la raison d´État, Paris, PUF Ed, 1992, p. 139.
14 TITULO 5º “Do Imperador”. CAPITULO I. Do Poder Moderador. Art. 98. O Poder Moderador é a chave de toda a organisação Politica, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independencia, equilibrio, e harmonia dos mais Poderes Politicos. Art. 99. A Pessoa do Imperador é inviolavel, e Sagrada: Elle não está sujeito a responsabilidade alguma”.
15. Roberto Romano : "Democracia, justiça e eleições" in Fronteiras do Pensamento, retratos de um mundo complexo (São Leopoldo, Ed. Unisinos, 2008), página 241. Também : Roberto Romano : "Mentira e razão de Estado", aula inaugural da Escola Superior da Procuradoria do Estado de São Paulo :
http://escolapge.blogspot.com.br/2007_03_01_archive.html#8375465921568058484 (07/03/2007).