ONU ridicularizava ditadura brasileira e ação do SNI
Documentos secretos mostram que Capitão Ubirajara era alvo das críticas do órgão internacional
08 de novembro de 2012 | 10h 38
Jamil Chade, correspondente
GENEBRA - Telegramas secretos da Organização das Nações
Unidas (ONU) do final dos anos 70 revelam como funcionários de alto
escalão da entidade ridicularizaram internamente os militares
brasileiros. Um dos alvos das críticas explícitas era o Capitão
Ubirajara, que chegou a ser chamado nos documentos de "dançarino de
flamenco" por seu estilo.
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Desde domingo, o jornal O Estado de S. Paulo e o
Portal Estadão vêm publicando uma série de reportagens baseadas nas
revelações contidas em arquivos mantidos pela ONU em Genebra, justamente
sobre a situação de direitos humanos e dos refugiados no Cone Sul.
O encontro entre um funcionário de alto escalão da ONU e Ubirajara
ocorreu por conta de um opositor argentino, Miguel Guagnini, que estaria
vivendo no Brasil e sendo ameaçado, apesar de o governo ter prometido
que o dissidente seria protegido até poder deixar São Paulo.
A ONU foi então procurar o responsável brasileiro para entender qual
era o motivo de sua prisão no final de julho de 1978. Alguns dias
depois, Guy Prin, representante regional do Acnur no Rio de Janeiro,
escreveria para Kevin Lyonette, representante regional para a América
Latina Meridional, em Genebra, relatando a situação e seu encontro com o
suspeito de comandar torturas em São Paulo. Ubirajara era delegado da
polícia civil de São Paulo e seu verdadeiro nome seria Aparecido Laertes
Calandra.
A reunião escancarou um encontro entre dois mundos radicalmente
diferentes. Prin notou que, no escritório de Ubirajara, um cartaz com a
Declaração Universal dos Direitos Humanos estava colada na parede. O que
chamaria a atenção da ONU foi o fato de que o cartaz era novo e
"parecia ter sido colocado na parede" por ocasião da visita.
O telegrama de 2 de outubro de 1978 revela que, em festas
diplomáticas de embaixadas estrangeiras no Brasil, o tema da repressão
era corrente entre os embaixadores. Longe das autoridades brasileiras,
os estrangeiros teciam duras críticas contra as violações de direitos
humanos pelo regime. Numa dessas festas, no dia 20 de julho num
consulado europeu em São Paulo, a atitude de Ubirajara seria alvo de
comentários que Prin acabaria reproduzindo em seu telegrama.
"Alguns diplomatas dizem que esse nome (Ubirajara) na verdade serve
para cobrir o ato de vários torturadores, entre eles o Dr. Fleury,
outros estimavam que ele não existia. Já outros alertam que ele é o
autor da morte na prisão do jornalista Vladimir Herzog em 1975", aponta
Prin em sua carta destinada
à Genebra.
à Genebra.
Mas o encontro entre a ONU e Ubirajara serviria para a entidade
internacional constatar que o personagem de fato existia, mas "não se
qualificaria" para nenhum prêmio de Direitos Humanos. A descrição que
ele traça do coronel não apenas o ridiculariza perante o restante dos
funcionários da ONU, mas traça um perfil debochado do próprio regime
militar brasileiro.
Segundo o telegrama, o encontro ocorreu nas escadarias de uma casa na
Rua Piauí, em São Paulo. O brasileiro teria aparecido para o encontro
com um ar de "dançarino de flamenco", barba negra feita em seu mínimo
detalhe e um terno cor mostarda. "Era um personagem que você hesitaria
em dar carona e tê-lo ao seu lado", descreveu Prin.
Ubirajara acabaria confessando porque Guagnini teria sido preso: ele
repartia no Brasil uma revista produzida em Paris e com conteúdo
trotskista. Mas o brasileiro insistiria que não o torturou. "Pode
perguntar a ele", declarou Ubirajara.
A ONU não deixou de ridicularizar uma vez mais o serviço secreto
brasileiro, incluindo no telegrama o desenho que o regime teria
produzido do esquema montado pelo argentino. O material chegaria de
Paris para São Paulo e, de lá, repartido para México, Venezuela e
Equador. "O desenho do Serviço Nacional de Informações merece ser
reproduzido", escreveu a ONU, em tom de ironia.
O deboche não se limita a isso. Para o funcionário, grande parte do
serviço dos policiais vestidos a paisana era sentar em suas mesas "e ler
os jornais do dia".