sábado, 24 de novembro de 2012
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Visita ao inferno
Jacques Gruman
Cadeia no Brasil foi
feita para quem é pobre e miserável, para quem já está acostumado a passar fome
(padre Valdir João
Silveira, coordenador nacional da Pastoral Carcerária)
Era sagrado.
Bastava sentar na mesa do almoço e uma musiquinha tensa anunciava no rádio a Patrulha
da Cidade. O locutor, Samuel Samuca Corrêa, tinha o estilo
sensacionalista de certa imprensa nos idos dos anos 60. O script era de um
noticiário policial comentado. Sobraram na memória o tratamento agressivo
contra os “bandidos” (muquiranas era o adjetivo mais suave) e uma
delegacia que simbolizou, no meu imaginário adolescente, um terrível castelo de
sombras. Era a Invernada de Olaria, apresentada com requinte de sadismo por
Samuca como o local de defesa da sociedade, dos justiçamentos. Podíamos
dormir tranquilos, os policiais sabiam o que tinham que fazer ... Ninguém ouvia
ileso aquele programa. Ainda mais entre uma colher de arroz e outra de abóbora.
Violência naquela
época tinha outra cara. O Rio convivia com punguistas, batedores de carteira,
“olha o rapa !”, ladrões de galinhas, malandragem-navalha na Lapa, um ou outro
crime passional, aqui e ali escândalos na classe média (como o assassinato de
Dana de Teffé, jamais esclarecido; “onde estão os ossos de Dana de Teffé ?”
virou bordão do Carlos Heitor Cony). Garrafas de leite e bisnagas eram
colocados de manhã nas portas das casas, que não tinham grades, e não eram roubados.
Andava-se pelas ruas a qualquer hora, sem a sensação de risco iminente. Nada de
milícias ou bandos de traficantes armados dominando comunidades pobres. Poucos
criminosos ganhavam notoriedade. Cara de Cavalo e Mineirinho foram exceções e,
quando caçados, engordaram as tiragens da imprensa marron. Manoel Moreira, o
Cara de Cavalo, atuou principalmente no Território Sagrado, a minha Tijuca. Foi
cafetão, pequeno bicheiro, fumava seu baseado. Permaneceria apenas uma
estatística se não tivesse matado, em tiroteio, um detetive famoso: Milton de
Oliveira Le Cocq. Foi jurado de morte. Mais de 2 mil policiais participaram da
caçada, que terminou na estrada para Búzios. Com 23 anos, Cara de Cavalo foi
executado por 52 tiros, sendo 25 somente na região do estômago. Entre seus
algozes estavam alguns policiais, mais tarde tidos como sócios-fundadores e
ativistas do Esquadrão da Morte. Foi o caso de Guilherme Godinho Ferreira,
Sivuca, que imortalizou o lema “bandido bom é bandido morto”.
Cara de Cavalo tinha uma aura romântica. Roubava cargas e as distribuía no
morro do Esqueleto, onde morou até os 16 anos. Conviveu com os artistas
plásticos Lygia Clark e Hélio Oiticica. Foi nele que Hélio se inspirou para
criar uma de suas obras mais famosas: um desenho, onde aparece o corpo de Cara
de Cavalo e se lê: “Seja marginal, seja herói”.
Comparando com o que se vê hoje nas grandes metrópoles brasileiras, minhas
memórias parecem roteiro de filme amador. A criminalidade se estruturou em
pequenos exércitos, com armamento sofisticado, domínio de técnicas de mercado e
penetração no espaço político institucional. Na outra ponta, o consumidor
financia a algazarra, comprando drogas. “De noite, Ipanema brilha”, dizia o
ex-delegado Hélio Luz. O Estado fica amarrado entre a corrupção do aparato
policial e a brutalidade das instituições carcerárias. Um Judiciário paquidérmico
e obediente a leis que punem os mais fracos completam essa festa macabra.
Em tal contexto, a declaração do ministro da Justiça, Eduardo Cardozo, de que
preferia morrer a passar alguns anos numa prisão brasileira, merece um olhar
atento. Não é comum uma autoridade reconhecer que sua área de atuação anda mal
das pernas. A rotina é a indústria de douração de pílulas. Reconhecido esse
mérito, cabe perguntar por quê a constatação não veio acompanhada de uma
necessária autocrítica. Afinal, a turma do doutor está no poder há uma década
e, embora a calamidade seja muito mais antiga, ficamos sem saber o que se está
fazendo para retirar o sistema prisional brasileiro do status de masmorra
medieval.
O quadro é de vomitório. Temos a quarta maior população carcerária do mundo,
com mais de meio milhão de pessoas presas em celas superlotadas. Os detentos
vivem em péssimas condições de higiene, são forçados muitas vezes a se revezar
para dormir, nas delegacias a tortura é arroz de festa, praticamente não há
programas de ressocialização. Um deputado federal identificou unidades
prisionais onde cada preso tinha cerca de 70 centímetros quadrados para viver.
Latifúndio ... para um coelho. O desespero e a corrupção fizeram prosperar
grupos criminosos nos cárceres, que agem com desenvoltura e impunidade,
comandando ações dentro e fora das prisões. Atestado de absoluta incompetência
do poder público para desatar esse nó. O governo federal não coordena, nem
articula. Os governos estaduais se omitem. Os recursos para diminuir a
tragédia, já escassos, se perdem em infinitas malhas burocráticas. A questão é:
por que esse descalabro continua ?
Uma das respostas me parece óbvia. A sociedade não se incomoda em conviver com
essa barbárie. Sancionando o tratamento desumano dado aos presos comuns, ela
ecoa o Samuca: esses muquiranas estão tendo o que merecem. Na linha
de mestre Sivuca, parece dizer que bandido bom é bandido torturado, com selo de
qualidade das autoridades. Claro que os filhos da nossa aristocracia têm
tratamento diferente. Flagrados com a boca na botija, detentores de diploma de
nível superior, parlamentares, governadores, prefeitos, líderes religiosos e
oficiais das Forças Armadas e do Corpo de Bombeiros têm direito a prisão
especial. Todos os bichos são iguais, mas uns são mais iguais do que os outros.
Um alto magistrado acaba de dizer, a propósito de um dos condenados no processo
do mensalão, que, à falta de vagas para cumprimento das penas em regime
semi-aberto, o sentenciado deve cumprir seu castigo em liberdade. Sujeito
humanista, esse. No entanto, por que não lança uma ampla campanha nacional,
defendendo igual direito para os milhares de presos que, sem poder pagar os
honorários de bons advogados, apodrecem em delegacias ou celas indignas ?
Estamos tão habituados com certas cenas que o absurdo passa por natural.
Quantas vezes já vimos os chamados presos de alta periculosidade serem
transferidos para prisões de segurança máxima ? E de lá para outras, em regiões
remotas ? É uma prova tão robusta de incompetência, que deveria resultar em
demissão de todos os responsáveis pela segurança pública no país. Todos. Se não
conseguem evitar que gente encarcerada se comunique com o exterior, uma
tarefinha elementar, desencadeando ações criminosas, melhor seria que pedissem
o boné.
Se o ministro Cardozo não está à altura do desafio que ele, corajosa mas
insuficientemente, reconheceu, deveria pedir as contas. Se não tem capacidade
para comandar uma reação, mais digno seria passar o bastão. Estamos em área
dolorosa, furúnculo numa sociedade hipócrita, preconceituosa e cínica. Que
seleciona vítimas, define o que é suportável com base numa espécie de seleção
natural. Faz lembrar um poema do Manuel Bandeira, que nem era dado a voos
sociológicos:
Vi ontem um
bicho/Na imundície do pátio/Catando comida entre os detritos./Quando achava
alguma coisa,/Não examinava nem cheirava:/Engolia com voracidade./O bicho não
era um cão,/Não era um gato,/Não era um rato./O bicho, meu Deus, era um homem.