Ayres Britto, político
24 de novembro de 2012 | 2h 07
ROBERTO ROMANO - FILÓSOFO
PROFESSOR DE ÉTICA E FILOSOFIA NA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
(UNICAMP). É AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE 'O CALDEIRÃO DE MEDEIA'
(PERSPECTIVA) - O Estado de S.Paulo
A Ação Penal 470 marca uma forte mudança no paradigma
jurídico brasileiro. O termo "paradigma" surge num campo da língua grega
antiga que se liga a deiknumi, cujo sentido é "mostrar", "demonstrar". A
raiz (deik) remete ao ato de mostrar mediante a palavra "o que deve
ser", donde o elo etimológico com dike a lei, a regra (tal é a lição de
Émile Benveniste no Vocabulário das Instituições Indo-Europeias). A
norma legal passou a ser aplicada de fato pelo Supremo Tribunal Federal
(STF).
Muitos julgam que o processo foi mais político do que técnico.
Haveria um rigor excessivo contra certo partido ou tendência ideológica
em favor de outras formas de pensamento. Tal problema não ocorre apenas
em Brasília. Na Alemanha, ainda em 2011, estabeleceu-se áspero debate
sobre as atribuições do Tribunal Constitucional. Seria não político o
juízo dos magistrados? Aquela Corte pode rejeitar normas do Legislativo e
assumidas pelo Executivo. Ela autorizou a entrada da Alemanha na União
Europeia, permitiu o envio de tropas para o exterior, etc. Cabe a ela
decidir se o Parlamento pode ser dissolvido, mesmo contra a vontade dos
deputados. Dificilmente alguém ousaria dizer que tais decisões são
alheias à política. Além dessas faculdades, os juízes alemães julgam
casos de violações de direitos individuais e coletivos, o que se
enquadra no horizonte político pela repercussão na vida civil.
Dieter Grimm, em denso texto sobre o problema (no Frankfurter
Allgemeine Zeitung, 22/12/2011), alerta para as diferenças entre a ordem
política comum e a que se determina na Corte. A primeira é que o
tribunal não tem nenhum programa político e não precisa propagar ou
expor justificativas nos conflitos partidários. O trabalho judicial
determina regras e princípios que asseguram o funcionamento de todos os
partidos na corrida pelo poder. Assim, trata-se de política, mas em
ordem mais elevada. Cabe ao tribunal dizer o que ordena a Constituição. É
tarefa árdua medir o quanto uma Corte decide a partir de interesses,
atendidos ou ameaçados, tanto na sociedade quanto nas formas estatais.
Adiantar, sem acurado exame, que seus pronunciamentos se inclinam para
uma ou outra organização partidária, financeira, religiosa, ideológica é
fazer tábula rasa da lei e das técnicas científicas postas à disposição
dos magistrados, é ignorar a acusação e, principalmente, a defesa.
Ainda não se esgotou o debate entre Hans Kelsen e Carl Schmitt sobre
quem é o protetor da Constituição. A Ação Penal 470 foi um experimento
crucial: a política deve ser submetida a regras? Onde está a
prerrogativa de sancionar positiva ou negativamente os agentes do poder?
Respondam os que percebem no STF a prática indevida da política: a
decisão sobre a norma constitucional cabe ao Judiciário ou aos
governantes? A alternativa ao arbítrio dos juízes, suposto ou efetivo,
seria a ditadura do Congresso Nacional ou da chefia do Estado. Com o Ato
Institucional n.º 2 os dirigentes de 1964 "resolveram" o problema em
detrimento do STF. Não foi boa receita jurídica ou política (cf. Osvaldo
Trigueiro do Vale, O Supremo Tribunal Federal e a Instabilidade
Político-Institucional, no capítulo 6, O Supremo e o Ato Institucional
2). A opção não é inelutável, mas para dela escapar é preciso cautela. A
Corte tenta aplicar, na concorrência pelo poder (guerra de todos contra
todos), previsibilidade e salvaguardas em benefício de todos os
interessados, não de alguns ou dos que hoje comandam os palácios.
Um fato notável no julgamento da Ação Penal 470 foi a tensão entre os
magistrados, sobretudo entre o relator e o revisor. Algo normal em
instância colegiada surgiu na mídia como desastre. Todos os juízes devem
ser respeitados em suas teses e análises, sobretudo quando pairam
dúvidas sobre a culpa dos réus. Não pode existir maniqueísmo do bem na
Justiça. Nenhum magistrado está acima dos outros, mesmo que sua posição
seja simpática ao público. É preciso louvar as virtudes democráticas e
conciliatórias do então presidente da Suprema Corte, Carlos Ayres
Britto. De maneira saborosa, ele disse que os choques no plenário se
acomodam como as abóboras ao andar da carroça. Lembrando que abóboras de
casca dura se quebram com facilidade, a imagem é fiel ao que tenta
retratar.
Ser presidente de uma Corte onde impera a casca dura da vaidade
inflada pelo próprio saber (forte dose de arrogância, que os gregos
chamavam orgulho desmedido ou hybris) é tarefa de prudência e
diplomacia. Segundo o juiz da Suprema Corte norte-americana William
Rehnquist, "o chefe do tribunal preside um colegiado não de oito
subalternos, a quem ele pode dirigir ou instruir, mas de oito associados
que, como ele, têm garantias de cargo enquanto durar o seu bom
comportamento, e que são independentes como leitões no gelo. Ele pode no
máximo os persuadir ou bajular" (The Supreme Court: how it was, how it
is, 1987). Rehnquist conta uma anedota ilustrativa. Charles Evans
Hughes, ao dirigir o tribunal, teve problemas com o horário das
reuniões. Os juízes demoravam para se apresentar. Certo dia, todos já na
sala, faltava o septuagenário James Clark McReynolds. Avisado por
Hughes de que seus colegas o esperavam, ele mandou a seguinte mensagem
por um funcionário: "O juiz McReynolds diz que ele não trabalha para
você" (J. Simon, In His Own Image, the Supreme Court in Richard Nixon's
America, 1973).
Se o STF deve ser tribunal político no sentido elevado (sua história
não garante tal fórmula nas ditaduras Vargas e de 1964, e mesmo depois) é
algo que veremos agora. Esperamos o mesmo rigor em processos como os
que envolvem os políticos do PSDB mineiro e nos casos similares da
política nacional. Ayres Brito mostrou virtude política de estadista.
Tal coisa, diria Spinoza, "é difícil e rara". Que o sucessor (ministro
Joaquim Barbosa) observe o exemplo, para o maior bem da cidadania
brasileira.