Diplomacia
De Golbery a Dirceu
A política brasileira nos telegramas dos EUA
RESUMO Telegramas diplomáticos revelam cenas da relação
Brasil-EUA: o apoio de Kissinger a Golbery, as conexões de José Dirceu
com Washington, o último jantar de Collor como presidente com diplomatas
norte-americanos, a três dias do impeachment, e as relações de Marta
Suplicy com a embaixadora Donna Hrinak.
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RUBENS VALENTE
O GOVERNO DOS EUA liberou para consulta, em setembro, um lote de
telegramas diplomáticos sigilosos que descrevem encontros de seus
representantes com políticos brasileiros. Os telegramas trazem detalhes
de diferentes momentos históricos, da abertura durante a ditadura
militar (1964-85) à aproximação do PT com o Partido Republicano, em
2002, quando Lula chegava ao poder.
Leia abaixo duas dessas histórias e, em folha.com/ilustrissima, telegramas sobre encontros de diplomatas dos EUA com Marta Suplicy, Fernando Collor de Mello e dom Paulo Evaristo Arns.
BRASÍLIA, 1976. "Estou lisonjeado por você ter vindo", agradeceu o
general Golbery do Couto e Silva a Henry Kissinger, no Palácio do
Planalto. Foi o primeiro encontro no Brasil entre o conspirador do golpe
de 64, criador do SNI (Serviço Nacional de Informações) e homem forte
do ditador Ernesto Geisel (1974-1979), e o norte-americano, principal
executor da política externa dos EUA no cargo de secretário de Estado
dos EUA do governo Gerald Ford (1974-1977).
Aquela era a primeira viagem de Kissinger ao Brasil desde 1962. Ele
disse se recordar dos "estudantes fora de controle". Imaginando uma
ditadura de esquerda, do tipo "peronista", ele atacou: "[o presidente
João] Goulart, eu acho, ou era um homem perigoso ou lhe faltava
compreensão".
À vontade, Golbery fez a primeira confidência da manhã: "Nós estávamos
esperando. Nós queríamos manter a presidência de Goulart até o último
instante". Kissinger confortou-o: "Eu fui solidário com o que vocês
fizeram".
Golbery entrou no ponto central do que seriam suas preocupações. Admitiu
que, "numa primeira etapa", o Brasil viveu sob uma "ditadura militar".
Mas isso seria passado. Agora ele diria que o país atravessava um
período tão somente "autoritário". Do qual enfrentava "problemas" para
sair.
Kissinger concordou: "Evolução sem caos, esse é o problema de fato".
Golbery contemporizou: "Nós não podemos abrir o processo muito
rapidamente. Nós temos uma política gradualista [de abertura]".
O secretário de Estado deu então uma garantia e uma orientação. "Bem,
vocês não receberão nenhuma pressão dos EUA. Cabe a vocês decidir a taxa
de velocidade com a qual vão se movimentar".
Golbery respondeu que o país estava sob "alguma pressão, por causa da
imagem do país mundo afora". A reunião ocorreu meses após as mortes do
jornalista Vladimir Herzog (1937-1975) e do operário Manoel Fiel Filho
(1927-1976) nos porões da ditadura.
Kissinger novamente tranquilizou o general: "É claro, será bom para você
se moverem naquela direção [abertura política], mas a taxa pela qual
vocês se movem é uma decisão do Brasil". O maior aliado brasileiro
deixou assim clara a sua tolerância com a ditadura. O país viveu mais
nove anos sob o jugo militar até a eleição de Tancredo Neves, em 1985.
Autor de "Kissinger e o Brasil" (Zahar), o professor da FGV e colunista da Folha
Matias Spektor disse que os cinco telegramas recém-liberados pelos EUA
sobre conversas de Kissinger são inéditos, incluindo o que cita Golbery.
Dessa conversa, só era conhecida a versão brasileira.
SÃO PAULO, 2002. No começo da campanha presidencial, o PT tinha
um problema: deixar claro que não daria uma guinada à esquerda na
política econômica -um analista do banco Goldman Sachs chegou a criar um
"lulômetro" para medir os riscos de uma possível vitória de Lula. O PT
precisava urgentemente "acalmar os mercados".
Como parte desse esforço, José Dirceu, então coordenador da campanha,
foi a um almoço secreto com a embaixadora dos EUA, Donna Hrinak, no
escritório do empresário Mario Garnero, do grupo Brasilinvest. Dirceu
chegou a bordo do helicóptero privado de Garnero ao 21º andar da sede do
banco, na avenida Faria Lima.
A cena deixou a embaixadora confusa, como ela registrou: "É uma imagem
muito diferente para um partido de 'trabalhadores'". A própria
identidade do responsável pelo encontro a impressionou. "Mario Garnero é
um dos principais líderes empresariais do Brasil e poderia parecer uma
escolha estranha ser alguém capaz de intermediar encontros para o PT."
Garnero e Lula se conheceram na época nas greves dos operários do ABC,
quando o banqueiro liderava a associação das montadoras de veículos.
Desde então construíram "um relacionamento de respeito mútuo", anotou
Hrinak.
O conteúdo do encontro entre Dirceu e Donna ficou sob sigilo por uma
década, até aparecer no telegrama agora liberado pelos EUA. Garnero
contou à Folha que os participantes queriam a imprensa longe.
"Acho que seria constrangedor para todos se alguém soubesse, poderia
atrapalhar a conversa. O pessoal do PT manteve mesmo o sigilo", disse o
banqueiro. Ele leu as seis páginas do telegrama e considerou o conteúdo
extremamente fiel à conversa.
O encontro, segundo Garnero, ocorreu a pedido de um amigo de Dirceu,
Luiz Carlos Gaspar. Na reunião, segundo Hrinak registrou no telegrama,
Dirceu considerou o almoço uma oportunidade para reafirmar que "o PT
está pronto para formar um governo nacional maduro sem um viés
anti-EUA". E reconheceu: "Dirceu comentou que, olhando em retrospecto,
foi uma sorte o PT ter perdido a campanha presidencial de 1989, porque
na época não tinha a necessária experiência para governar."
A embaixadora quis saber "quem falava pelo PT", pois um deputado do
partido havia comparado o presidente George W. Bush com "Átila, o Huno",
o que não seria de modo algum "um sinal de interesse em manter boas
relações com os EUA". Os dois não mencionaram o nome do petista, mas se
trata de Paulo Delgado (PT-MG).
Dirceu desqualificou a crítica de Delgado a Bush: "Vocês não têm também seus 'malucos' nos partidos políticos americanos?".
Donna cobrou informações de que o PT seria um dos autores da ideia de um
plebiscito sobre a Alca (Área de Livre Comércio das Américas, que os
EUA tentavam implantar), organizado pela CNBB (Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil). Dirceu afastou a dúvida: "Há pouco tempo para educar
os eleitores sobre o assunto".
As conversas entre petistas e agentes do governo dos EUA se estenderam
pelos dias seguintes. Garnero se incumbiu de entregar cartas pessoais de
Dirceu a figuras proeminentes dos EUA, como Dick Chenney, o
vice-presidente, e Ronald Evans, secretário do Departamento de Comércio.
Em duas semanas, o PT divulgaria a Carta ao Povo Brasileiro, que, ao
falar "em crescimento econômico com estabilidade e responsabilidade
social", acalmou os mercados.
Dez anos depois, Dirceu disse à Folha, por meio de sua
assessoria: "O objetivo da reunião foi buscar uma aproximação com o
Partido Republicano dos EUA, com o qual o PT não mantinha nenhuma
relação. Como desdobramento daquele encontro, ele [Dirceu] programou uma
viagem aos Estados Unidos para apresentar o PT e as propostas de
governo do então candidato Lula à Presidência a um grupo de empresários,
banqueiros e representantes do governo do então presidente George W.
Bush. Garnero era interlocutor frequente dos republicanos. O ex-ministro
não tem lembrança de como foi o encontro com a embaixadora".
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Kissinger deu uma garantia e uma orientação. "Bem, vocês não
receberão nenhuma pressão dos EUA. Cabe a vocês decidir a taxa de
velocidade com a qual vão se movimentar"
Dez anos depois, Dirceu disse: "O objetivo da reunião foi buscar uma
aproximação com o Partido Republicano dos EUA, com o qual o PT não
mantinha nenhuma relação"